Tradições e lendas

Das tradições católicas às lendas: histórias de cemitérios

Construídos inicialmente como elementos agregadores de fiéis para a Igreja Católica, estes locais foram pouco a pouco sendo importantes para a reorganização urbana de São Luís, mas também foram espaço de segregação

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h28


[e-s001]Fundados inicialmente a par­tir das tradições católicas e sob a influência das ideias de Constantino (antigo imperador) a partir do ano 330 depois de Cristo, os cemitérios surgiram em São Luís com a instituição da “Cidade dos Azulejos”, em meados da primeira metade do século XVII. Com o passar dos anos, esses espaços, usados para fomentar os pensamentos religiosos de parte da sociedade à época, foram recebendo ajustes e sendo remodelados em áreas mais adaptáveis às necessidades de uma sociedade que, afetada por costumes europeus, precisou tomar medidas – por exemplo – extremas para se adequar às condições mínimas de higiene. Atualmente, vários desses cemitérios guardam histórias, e até mesmo lendas que, contadas pelos “autores”, podem ter um fundo de verdade. Os contos e as peculiaridades dos cemitérios também inspiraram escritores.

O primeiro dos cemitérios nasceu nos arredores dos alicerces da Ilha, na atual Avenida Pedro II. Construído ao lado da antiga Capela da Misericórdia, conforme cita o historiador Antônio Guimarães em “Becos & Telhados”, o Cemitério da Misericórdia foi fincado a partir da irmandade de mesmo nome que, recém-chegada à cidade, queria instalar suas bases ideológicas e, desta maneira, arregimentar novos fiéis. Para justificar o cemitério ao lado da capela, os defensores católicos desta irmandade diziam que quem era enterrado ali “estava mais próximo de Deus”.

Segundo referendou Milson Coutinho em “A Revolta de Bequimão” e o pesquisador Ramssés de Souza Silva, o Cemitério da Misericórdia ocupava o espaço atualmente usado pelas instalações da agência bancária do Banco do Brasil, a poucos metros da Praça Pedro II. De acordo com Antônio Guimarães, uma das principais lideranças da tão conhecida Revolta de Beckman, Manoel Beckman, foi enterrado nesse cemitério.

Mesmo após a construção do cemitério, ainda era comum, nos séculos XVII e XVIII, o enterro de corpos em igrejas e capelas. Com o tem­po, o costume – eminentemente católico e estimulado pelos representantes da Igreja à época – criou um problema de ordem sociológica, ligada às questões sanitárias. Por causa da alta concentração de corpos, em algumas construções e áreas houve uma disseminação desenfreada de doenças, o que estimulou o registro de diversas epidemias que assolaram a cidade. “Foi um período em que a sociedade viveu um dilema, ou seja, o de manter as tradições católicas
e, ao mesmo tempo, manter minimamente saudável toda a população”, disse o pesquisador e turismólogo Antônio Noberto.

Apesar das reais necessidades de criação de políticas públicas de saúde, os costumes católicos foram se sobrepondo aos de interesse da população. Por causa disso, o capitão Fernando Pereira Leite de Foios (conforme citado em “Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão”, de César Augusto Marques e em “A Irmandade da Misericórdia: disputas pelos ritos fúnebres e urbanização em São Luís na segunda metade do século XIX”, de Carlos Henrique Pinto da Silveira”), em ofício encaminhado à Câmara da época, alertava quanto à necessidade de abertura de novos cemitérios.

Segundo Foios, “como a todos os corpos se dão sepulturas no estreito recinto do adro da matriz da mesma capital, sucedendo encontrar-se ao abrir das sepulturas vestígios de não estarem bem consumidos os cadáveres”. Simultaneamente ao Cemitério da Misericórdia e situado no atual espaço da sede da Associação Comercial do Maranhão – ao lado da Praça Benedito Leite –, havia o Cemitério da Igreja Matriz, em referência à Sé antiga (atual Catedral Metropolitana).
Mesmo com dois espaços de ocupação de corpos, no início do século XIX, a necessidade de novos cemitérios de ordem pública era evidente. Por isso, em meados da primeira metade desse século e com base em uma concessão de terreno dada no dia 10 de maio de 1794, é aberto o cemitério conhecido como o da Câmara Municipal – ou Canto da Viração.

[e-s001]Situado na esquina entre as ruas do Passeio e Grande, e na área atualmente ocupada pelo Palacete Gentil Braga, o local era ligado ao Legislativo da cidade até 1804, quando a responsabilidade do espaço passou a ser da Irmandade da Misericórdia, entidade influente deste período da sociedade ludovicense.

Devido ao pequeno espaço, a Irmandade teria “perdido o interesse” no terreno e, em 1805, foi aberto o Cemitério Novo da Misericórdia, onde atualmente funciona o Hospital Djalma Marques, o Socorrão I. Com esta nomenclatura, o local foi preparado para evitar que os corpos fossem enterrados nas igrejas e/ou nos arredores destas construções católicas. Para isso, conforme cita o Regulamento do Cemitério da Misericórdia, “todas as tardes ficavam seis sepulturas abertas, com cinco palmos de fundo, atitude em conformidade com as preocupações dos médicos de enterrar os corpos o mais rápido possível, para que não houvesse contaminação de doenças provenientes da exposição ao cadáver”.

Mesmo com as tentativas de adequações de saúde, houve um período em que, de acordo com César Augusto Marques – em “Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão” –, o Cemitério Novo “foi relegado ao abandono, ficando em completo desprezo, servindo até mes­mo de pastoradouro aos animais e todo o edifício em ruínas e indecência”. Em 1846, com a Lei Provincial número 225, em que “fica proibido, depois de construído os cemitérios, o enterramento de pessoas no recinto das igrejas”, imaginava-se que as medidas mais justas de saúde seriam tomadas. Apesar da vigência da lei, os enterramentos nas igrejas prosseguiam, pelo menos para as pessoas integrantes das esferas políticas e indivíduos pertencentes às camadas mais privilegiadas da sociedade.

De acordo com o trabalho “O Estado Sanitário da Província do Maranhão de 1850 a 1860”, São Luís foi assolada na segunda metade do século 19 por várias epidemias (de febre amarela, varíola, de cólera e impaludismo). Sem controle governamental e qualquer política epidemiológica até então, houve uma demanda ainda maior de corpos a serem enterrados nos cemitérios até então existentes.

Segundo o “Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão”, de César Augusto Marques, em 50 anos – de 1805 a 1855 –, foram enterradas aproximadamente 41.183 pessoas, entre aristocratas e escravos, no Cemitério Novo da Misericórdia, o que causou uma superlotação no espaço. Com a necessidade de disponibilização de novos espaços para a ocupação dos corpos, o então presidente da província, Olímpio Machado, comprou um terreno para a construção de um novo cemitério na chamada Quinta do Gavião.

De acordo com o pesquisador Ramssés de Souza, no dia 6 de agosto de 1855, foi aberto o Cemitério do Gavião – o mais antigo ainda em funcionamento na cida­de. Segundo César Augusto Marques, este foi o primeiro cemitério construído a partir de cálculos que se basearam nas condições topográficas e na climatologia (com base na análise das condições dos ventos), para que as impurezas dos corpos fossem literalmente arrastadas pelo vento para o oceano.

Outros cemitérios
Além dos cemitérios voltados para as condições sanitárias e de higiene, houve espaços construídos na cidade antiga para separar a elite do restante da população. Construído em meados de 1815 por iniciativa de Robert Heskerth, primeiro-cônsul britânico, nomeado para a então Província do Maranhão, o Cemitério dos Ingleses – que funcionava nas dependências do atual Colégio Sotero dos Reis, na Rua de São Pantaleão (Centro) - foi criado inicialmente para os protestantes, como forma de segregar os seguidores do então pensamento religioso das tradições católicas.

O cemitério – uma solicitação direta da Corte Real inglesa ao governo português da época – foi criado pelo parlamento e financiado pelas contribuições ordinárias que foram estabelecidas no comércio de importação e exportação inglesas. A criação do Cemitério dos Ingleses ocorreu pelo fato de que o Governo queria pôr em prática, ainda, uma espécie de “proteção” aos seus súditos britânicos, em quaisquer locais onde estivessem. Estima-se que mais de mil ingleses foram enterrados neste cemitério.

Rivalidade entre irmandades
De acordo com o “Relatório do Presidente da Província”, de Eduardo Olímpio Machado, citado por Carlos Henrique Pinto da Silveira, no ano de 1841, foi autorizada pela Câmara Municipal de São Luís a construção do Cemitério dos Passos (na área do Estádio Nhozinho Santos), “que seria administrado pela Irmandade da Santa Cruz do Bom Jesus dos Passos”. Oito anos depois, em 1849, uma Lei Provincial autorizou o funcionamento do espaço.

Por pertencer a uma irmandade diferente do grupo da Misericórdia, de acordo com autores, a administração do cemitério teria sofrido perseguições. A maior delas, de acordo com o relato de César Marques, aconteceu em 1869, quando uma informação alarmou a população: de que algumas mortes na cidade estariam ocorrido “devido à má qualidade da água potável da fonte do Apicum”, supostamente contaminada pelo enterro de corpos na região.

Para averiguar a situação, o então presidente da Província do Maranhão, Brás Florentino Henrique de Souza – médico e professor da Faculdade de Direito do Recife – nomeou uma comissão para analisar a água e a possível relação com o Cemitério dos Passos. Mesmo sem a existência de um parecer técnico, em 1870 foi solicitado à Câmara o fechamento do cemitério, que, de acordo com levantamentos, recebeu até 1.782 velórios. l

Cemitérios antigos por ordem de fundação

Cemitério Velho da Misericórdia (atual Banco do Brasil)
Cemitério da Igreja Matriz (atual sede da Associação Comercial do Maranhão)
Cemitério da Câmara Municipal (ou Canto da Viração, atual Palacete Gentil Braga)
Cemitério Novo da Misericórdia (atual Socorrão I)
Cemitério dos Ingleses (atual Colégio Sotero dos Reis)
Cemitério Irmandade dos Passos (atual Estádio Nhozinho Santos)
Cemitério do Gavião (o mais antigo em funcionamento na capital maranhense)
Fonte: Acervo Pesquisador Ramssés de Souza

Lápides

[e-s001]O Estado visitou as atuais dependências do Colégio Sotero dos Reis e constatou que restos de duas lápides do período em que funcionou o cemitério, além de parte do muro de proteção, ainda podem ser vistos. Em um dos restos das lápides, é possível ver parte das inscrições feitas em referência ao corpo de um inglês então enterrado ali.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.