Beleza

A viva arte de representar a morte

Espaço físico destinado aos mortos na sociedade é um reflexo do mundo dos vivos: ambos são regidos pela mesma lógica de organização; cemitério pode, então, ser visto como um lugar de representação simbólica do universo social

José Marcelo do Espírito Santo - Arquiteto, professor da UFMA e Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão

Atualizada em 11/10/2022 às 12h29

[e-s001]Arte e história estão presentes no Cemitério de São Pantaleão (Gavião), no Centro Histórico de São Luís, onde a expressão artística e a preocupação com os mortos revelam capacidades inerentes à natureza humana: o homem faz arte como forma de expressar e comunicar seus sentimentos, frente ao universo que o cerca (e que procura conhecer cada vez mais), e também preocupa-se com seus mortos, por meio de ritos que preparam sua passagem para um mundo que ele ainda desconhece.

O espaço físico destinado aos mortos na sociedade é um reflexo do mundo dos vivos: ambos são regidos pela mesma lógica de organização. O cemitério pode, então, ser visto como um lugar de representação simbólica do universo social, permitindo diferentes análises dos fenômenos relacionados à dinâmica cultural e das mudanças sociais. A arte também comparece como reflexo de quem a produz, apresentando as características culturais, políticas, sociais, econômicas e religiosas da população, filtradas pelo artista, que, associada ao tema da morte, perfila seus costumes, práticas e crenças.

O Cemitério de São Pantaleão foi inaugurado como Cemitério de São José da Misericórdia em 1855, pela Irmandade da Misericórdia (atual Santa Casa), para abrigar os mortos de um dos vários surtos de varíola por que passou a cidade. Localizado na Quinta do Gavião, ganhou uma pequena capela com ossuários laterais, instituída em 6 de setembro de 1855 e reedificada nos anos de 1869 e 1873, quando ganhou a forma atual. A Capela de São José ainda hoje apresenta os símbolos da Misericórdia: os três frontões da fachada principal são encimados por esculturas representando a Caridade, a Fé e a Esperança.

A imaginária presente no Cemitério do Gavião pode ser agrupada em três momentos, que acompanharam o ideário presente nos cemitérios da cidade do Rio de Janeiro (então Capital Federal), depois refletido para todo o país, por meio de esculturas, imagens religiosas e adereços funerários.

Devido às influências estilísticas estrangeiras historicamente recebidas pela arte brasileira e chegadas um pouco mais tardiamente na arte maranhense, as esculturas existentes no Cemitério do Gavião exemplificam três momentos da História da Arte. Inicialmente, refletem de forma heterogênea as correntes do classicismo-romântico europeu, posteriormente sofreram influência da corrente Positivista da Proclamação da República, e, finalmente e em grande profusão, revelam o ideário do Academicismo tardio, principalmente dos cânones da Academia Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro.

[e-s001]As mais antigas sepulturas do Gavião apresentam as representações da morte características do Império escravagista, com imagens escatológicas, macabras e mórbidas. A Escatologia -doutrina teológica do destino último do Homem (a Morte, a Ressurreição e o Juízo Final) e do Mundo (o Estado Futuro)- apresenta representações que nos remetem à consumação dos tempos: caveiras, oroboros (a cobra que morde o próprio rabo, símbolo do eterno retorno), tochas invertidas (a vida que se apaga), ampulhetas aladas (o tempo se esvaindo) e plantas narcóticas, como a papoula (um sonífero) que os anjos nos oferecem.

As estilizações do mundo greco-romano, etrusco e egípcio, foram traduzidos na cor branca e na forma piramidal das peças, as colunas partidas (a vida interrompida de forma prematura), ânforas (que contém o sopro vital), tochas e fachos cerimoniais. É também o momento do revivalismo, o neo-medieval romântico representado pelos morcegos, corujas, foices (o instrumento de Cronos, o Tempo) e serpentes (a eternidade no céu).

Neste primeiro momento, as representações da figura humana aparecem em relevos chapados, sem volumetria acentuada, sem nenhum tipo de sensualidade, apesar dos corpos elegantes e trajados classicamente. Apresentam expressões com emoções contidas, controladas ou em atitudes de reflexão. Não há desespero ou tristeza, somente melancolia. Para isso, a cor básica utilizada é o branco, também reflexo da escolha material (mármore ou lioz). Pertencem a este momento peças provenientes de Portugal, onde se destacam as marmorarias lisboetas de Antonio Rato e Germano José de Salles (o mesmo do Monumento a Gonçalves Dias).

Se no período Republicano desapareceram as características escatológicas, em favor de imagens que não representassem diretamente o suplício da morte, mas apenas um marco, um signo da morte, o Positivismo, por seu fraternalismo e solidariedade social, propôs a simples cruz (sem a imagem de Cristo crucificado) que iguala os mortos, e a representação do “Progresso pela Educação”, por meio de uma profusão de livros abertos e pergaminhos (também representação da Palavra Divina). Surgiram os anjos orantes “espreme limão” como um elemento repetido em profusão em todos os cemitérios brasileiros, representando o Julgamento e o Amor Divinos. A cor utilizada ainda nos remete ao mármore branco e neste momento destaca-se a produção local de lápides e importação de ornamentos através do marmorista Adísio Gondim.

Gradativamente, a imagem cemiterial igualitária proposta pelo Positivismo deu lugar aos símbolos que representaram a morte como um grande espetáculo e o cemitério como o local para demonstração de poder e opulência, da ostentação, do luxo e da grandiloquência. Surgiram a partir das décadas de 10 e 20 as grandes peças escultóricas carregadas de erotismo e sensualidade. Peças em bronze, ornamentando túmulos em pedras das mais variadas cores, foram representadas com roupas e vestes intencionalmente casuais, deixando à mostra curvas, seios e coxas. As expressões trouxeram emoções intensas, como tristeza e desespero, um êxtase que poderia ser tanto místico quanto sexual, confundindo o espectador.

[e-s001]Os anjos agora são triunfais, evocando a Ressurreição, o sensualismo do Art Nouveau aparece em imagens religiosas cristãs: o próprio Cristo nas mais diferentes situações, Santos e Mártires. As cruzes tornaram-se crucifixos e bustos e estátuas representam realisticamente as feições do morto. Surge a Vida no espaço da Morte.

São Luís ganhou nesse períodos exemplares da arte acadêmica carioca e paulista, representadas por peças do maranhense Flory Gama, Hugo Bertazzon, Fernando Frick e, principalmente, Heitor Usai, escultor italiano radicado no Rio de Janeiro que será o principal fornecedor de peças e temas para diferentes cemitérios de todo o país, até a década de setenta do século XX.

Para alguns autores sobre a gênese do fenômeno urbano, a cidade dos mortos antecedeu a cidade dos vivos na história da humanidade. Se observada sua última forma, adotada na metade do século 19, as alamedas arborizadas, a divisão em quadras e seções e as sepulturas ordenadas segundo uma numeração, representam um espelho da cidade maior que a contém. E a arte funerária por sua vez, mais do que revelar a concepção que o artista tem sobre a morte, nos revela aquilo que para o artista a morte enfrenta: a própria vida.

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