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Daniel Ortega, o revolucionário que é acusado de virar um tirano

Enquanto a Nicarágua completa 39 anos da Revolução Sandinista, muitos passam a ver o presidente do país como um déspota

- Atualizada em 11/10/2022 às 12h30
Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, durante comemorações da Revolução Sandinista
Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, durante comemorações da Revolução Sandinista (Daniel Ortega e e mulher)

NICARÁGUA - Na quinta-feira,19, a Nicarágua comemorou 39 anos desde que a Revolução Sandinista pôs fim a décadas de ditadura. Mas as celebrações foram ofuscadas pela sangrenta repressão ordenada pelo presidente Daniel Ortega - antes um herói reverenciado e agora acusado de se tornar um autocrata.

Desde maio, mais de 300 manifestantes contrários ao governo foram mortos nas ruas do país, e muitos outros foram feridos em tentativas de calar os críticos.

Aos 72 anos, Ortega não é mais um revolucionário idolatrado. Em vez disso, tem sido comparado aos Somozas, a dinastia de ditadores brutais que ele ajudou a derrubar nos anos 1970, quando era um guerrilheiro sandinista.

Há mais de três meses, o país vive turbulências. Milhares de manifestantes de toda a nação pedem a renúncia de Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, que ele nomeou como vice-presidente. Eles também querem eleições antecipadas.

A Nicarágua é o país mais pobre da América Central e o segundo mais pobre do hemisfério ocidental, atrás do Haiti, segundo um ranking da revista Forbes.

Quando o governo aprovou uma reforma previdenciária em abril - ampliando as contribuições e reduzindo aposentadorias -, uma onda de protestos varreu o país.

Estudantes ocuparam as ruas e foram endossados por indígenas e desempregados. Um levante civil contra o presidente estava sendo gestado.

A resposta de Ortega foi rápida e brutal - ele empregou as "turbas", grupos de policiais e paramilitares com armas de fogo.

Manifestantes foram alvejados nas ruas, e quando estudantes ergueram três acampamentos em universidades locais, foram sitiados.

Governo nega

Semanas de protestos sangrentos chocaram muitos nicaraguenses, mas não há estatísticas oficiais de mortos. Paramilitares negam haver grande número de vítimas, mas testemunhas e grupos de direitos humanos afirmam que mais de 300 pessoas foram mortas em eventos distintos. Eles dizem que alguns dos mortos são crianças e adolescentes.

Os manifestantes dizem que as forças de segurança têm empregado força excessiva, usando munição real contra pessoas desarmadas.

A Anistia Internacional diz que a "repressão estatal atingiu níveis deploráveis".

O último incidente ocorreu no câmpus da Universidade Nacional Autônoma da Nigarágua (Unan), em Manágua - onde estudantes e jornalistas se viram presos dentro de uma igreja e foram atacados à noite pelas forças de segurança.

"Este massacre precisa parar", tuitou o bispo auxiliar de Manágua, Silvio José Baez. Enquanto isso, estudantes transmitiam ao vivo mensagens de despedida.

"Para café da manhã, nos deram uma chuva de balas", tuitou o jornalista local Ismael López de dentro da igreja.

Ortega retomou o controle das ruas antes do 39º aniversário da Revolução Sandinista, neste dia 19. Mas muitos nicaraguenses hoje pensam que o ex-comandante sandinista começou a ficar parecido com o velho tirano que ele ajudou a tirar do poder.

As críticas a Ortega vêm de dentro e de fora da Nicarágua. "Este é um governo brutal, assassino... matando uma população desarmada", disse a ativista pró-direitos humanos (e nicaraguense) Bianca Jagger, ex-mulher do roqueiro inglês Mick Jagger. Para ela, "Daniel Ortega não virou um ditador da noite para o dia."

Em vez disso, a transição entre liderar um levante popular a esmagar uma revolta contra ele levou bastante tempo.

O jovem sandinista

Ortega cresceu ouvindo histórias de seu pai - que lutou ao lado de Cesar Augusto Sandino contra soldados dos EUA que atuaram na Nicarágua antes da Segunda Guerra Mundial.

Nos anos 1950, ele era um estudante e se juntou às manifestações para derrubar a dinastia Somoza - que era apoiada pelos EUA e governava a Nicarágua havia quatro décadas.

As atividades de Ortega fizeram com que fosse acusado de terrorismo e preso por sete anos no governo de Anastasio Somoza Debayle.

Após sua liberação, em 1974, ele aderiu à Frente de Libertação Nacional Sandinista (FLNS). Em 1979, o último presidente Somoza caiu.

Nicarágua sandinista

Ortega se tornou o rosto do novo governo sandinista, como coordenador da Junta de Reconstrução Nacional da Nicarágua.

O país vivia dias auspiciosos - tinha o apoio do governo Carter nos EUA e implantava ambiciosos programas de alfabetização, reforma agrária e reforma social.

Quando Ronald Reagan chegou ao poder nos EUA, o equilíbrio político na América Central estava sendo recalibrado.

Os sandinistas foram acusados de ficar muito próximos da Cuba de Fidel Castro e de armar guerrilheiros esquerdistas em El Salvador. O governo Reagan passou a financiar os chamados "Contras" - grupos guerrilheiros de direita que travaram uma longa guerra civil com as tropas do governo.

Nas eleições de 1984, Ortega virou presidente da Nicarágua pela primeira vez - com o apoio de cerca de 70% dos eleitores.

Mas, em 1990, o fraco crescimento econômico e a desilusão política vinham minando suas credenciais, e Ortega perdeu a presidência para uma antiga companheira de guerrilha, Violeta Barrios de Chamorro.

A derrota gerou divisões entre os sandinistas, mas Ortega usou o tempo na oposição para se reinventar como um político pragmático.

Ele ainda promovia bandeiras de esquerda e slogans anti-imperialistas, mas ao mesmo tempo cortejava empresários, o Judiciário, o Exército e se tornou próximo até da Igreja Católica ao assumir uma posição anti-aborto.

Ortega perdeu três eleições seguidas, em 1990, 1996 e 2001. Ele voltou ao poder em 2006, com 38% dos votos. Depois de quase 12 anos no poder, Ortega disse a manifestantes que não está disposto a renunciar ou convocar eleições antecipadas.

Críticos o acusam de se entrincheirar na presidência, inspirando-se nas táticas adotadas pela dinastia Somoza contra seus inimigos políticos: assassinar suas reputações manipulando a imprensa e reprimindo qualquer dissenso nas ruas.

Também como Somoza, ele distribuiu parte da riqueza nacional e de sua influência com a família - sua indicação mais controversa foi escolher sua mulher, Rosario Murillo, como vice-presidente.

Segundo analistas, uma das razões pelas quais Ortega tem sido poupado de críticas como as direcionadas à Venezuela e a Cuba é o relativo sucesso econômico de seu governo.

O pragmatismo de Ortega afastou o país dos ideais marxistas e de alianças que os EUA reprovavam. Mas a morte de centenas de dissidentes - acompanhada por crescentes índices de pobreza - podem impedir que a comunidade internacional continue de olhos fechados.

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