Crise migratória

Queda da migração para a Europa contradiz discursos xenofóbicos

De 850 mil requerentes de asilo na Grécia em 2015, número caiu para 13 mil neste ano; na Itália, fluxo de chegada é o menor em quatro anos; países ainda estão lutando para absorver os cerca de 1,8 milhão de chegadas pelo Mediterrâneo desde 2014

Atualizada em 11/10/2022 às 12h30
Chanceler alemã Angela Merkel durante reunião da União Europeia ontem em Bruxelas
Chanceler alemã Angela Merkel durante reunião da União Europeia ontem em Bruxelas (Chanceler alemã Angela Merkel durante reunião da União Europeia ontem em Bruxelas)


LAMPEDUSA/ITÁLIA — Nas praias da Grécia, milhares de migrantes desembarcavam todos os dias. Nos portos da Itália, milhares de pessoas desembarcavam todas as semanas. Nas fronteiras de Alemanha, Áustria e Hungria, centenas de milhares de pessoas passavam todos os meses. Mas isso foi em 2015.

Três anos depois do pico da crise migratória na Europa, as praias gregas estão comparativamente calmas. Desde agosto do ano passado, os portos da Sicília estão vazios. E na remota ilha de Lampedusa — o ponto mais meridional da Itália e outrora a linha de frente da crise — o centro de detenção de imigrantes está calmo há tempos.

"É a situação mais calma desde 2011. O número de chegadas diminuiu drasticamente", disse o prefeito da ilha, Salvatore Martello. É o paradoxo da crise migratória na Europa: o número real de imigrantes que chegam está de volta ao nível anterior a 2015, mas ainda assim o tema da imigração continua a sacudir o continente.

Ontem, líderes da União Europeia se reuniaram em Bruxelas para uma reunião sobre imigração que pode acelerar a morte política da chanceler alemã, Angela Merkel, e acabar com os esforços do bloco para criar uma política de imigração coerente.

A queda abrupta das chegadas de imigrantes não significa que os desafios tenham acabado. Os países ainda estão lutando para absorver os cerca de 1,8 milhão de chegadas pelo Mediterrâneo desde 2014. A ansiedade pública aumentou em países como a Alemanha depois de agressões envolvendo imigrantes, incluindo a morte de um estudante alemão de 19 anos e um ataque em um mercado natalino que matou 12 pessoas.

E os líderes ainda têm grandes discordâncias sobre quem deve assumir a responsabilidade pelos recém-chegados: Estados fronteiriços como a Grécia e a Itália, por onde a maioria dos imigrantes entra na Europa, ou países mais ricos como a Alemanha, que muitos imigrantes tentam alcançar.

No entanto, o que chama atenção é que muitos políticos europeus, particularmente de partidos de extrema direita, continuam a criar a impressão de que a Europa é um continente sitiado por imigrantes, mesmo quando os números apontam uma situação muito diferente.

"Nós falhamos em nos defender contra a invasão de migrantes", disse Viktor Orbán, o primeiro-ministro de extrema-direita da Hungria, em um discurso recente. Seu governo aprovou uma lei que torna crime ajudar imigrantes sem documentos.

Orbán não é o único a adotar uma linha dura em relação ao assunto. Desde o início do mês, Matteo Salvini, o ministro do Interior italiano, fechou os portos da Itália para barcos de resgate de organizações humanitárias. Horst Seehofer, ministro do Interior da Alemanha, ameaçou rejeitar os refugiados na fronteira sul do país. E, do outro lado do Atlântico, o presidente Donald Trump alegou, erroneamente, que a imigração levou a uma epidemia de crimes na Alemanha.

Mas a realidade é que, apesar da retórica, a imigração está de volta aos níveis anteriores à crise — e tem sido assim há algum tempo

Menos chegadas

Mais de 850 mil solicitantes de asilo entraram na Grécia em 2015, com a maioria deles chegando a países do norte da Europa, como a Alemanha. Até agora, neste ano, pouco mais de 13 mil fizeram a mesma jornada. Mais de 150 mil pessoas chegaram à Itália em 2015; o número neste ano, até agora, é inferior a 17 mil. Em 2016, mais de 62 mil pessoas procuraram asilo na Alemanha, em média, todos os meses. Este ano, essa média por mês caiu para pouco mais de 15 mil - a menor desde 2013.

Em Lampedusa, mais de 21 mil imigrantes desembarcaram em 2015. Neste ano, foram menos de 1.100. Só na Espanha houve aumento do número de chegadas, de mais de 16 mil em 2015 inteiro para 17 mil até agora neste ano. Mas o aumento ainda é comparativamente pequeno — mais pessoas chegavam diariamente na ilha grega de Lesbos no auge da crise do que devem chegar à Espanha em 2018.

— É uma crise inventada — disse Matteo Villa, um especialista em migração no Instituto Italiano de Estudos Políticos Internacionais. — Os fluxos dos últimos anos impulsionaram os partidos nacionalistas, que agora estão criando uma crise para obter ganhos políticos.

Ao mesmo tempo, vários governos europeus fizeram acordos de deportação com o Sudão, cujo líder, Omar al-Bashir, foi acusado de crimes de guerra. Um acordo com o Níger ajudou a combater o contrabando de pessoas no Saara Ocidental. Já os governos de Alemanha e Holanda negociaram em 2016 um acordo da União Europeia com o governo autoritário da Turquia, o que levou a uma queda imediata e drástica da chegada de imigrantes à Grécia pelo Mar Egeu.

" O paradoxo é que, nessa narrativa de que Merkel abriu as fronteiras da UE, foi de fato ela, com os holandeses, que negociou o acordo mais efetivo", afirma Gerald Knaus, diretor da Iniciativa Europeia de Estabilidade, um grupo de pesquisa com sede em Berlim que primeiro propôs o acordo.

Agora, o desafio da Europa é, em grande parte, sobre o processo: como abrigar solicitantes de asilo aguardando decisões sobre seus casos; como integrá-los na economia e na sociedade, se seus asilos forem aprovados; e como deportá-los, se não forem.

Esses desafios continuam, pois as autoridades europeias ainda não trataram dos acampamentos de imigrantes da Grécia, que abrigam cerca de metade dos 60 mil solicitantes de refúgio que estão no país, ou da economia subterrânea da Itália, onde muitos dos 500 mil imigrantes sem documentos são explorados.

A reunião de cúpula da UE, aberta nesta quinta-feira, é um lembrete de quanto o cenário político mudou. Merkel, a chanceler alemã que já foi líder do continente, agora precisa garantir um acordo com outros líderes europeus para impedir uma crise política na Alemanha.

Enquanto isso, os líderes anti-imigrantes também não têm posições comuns sobre a questão. A Itália quer acabar com as chamadas regras de Dublin, que estipulam que os requerentes de asilo devem permanecer no país da UE em que se registram pela primeira vez, e distribuir imigrantes por todo o bloco. Mas radicais como Orbán, o ministro do Interior alemão, Horst Seehofer, e o primeiro-ministro Sebastian Kurz, da Áustria, se recusam a dividir a carga da Itália e da Grécia.

"Suas propostas são fundamentalmente contraditórias. Salvini e os italianos querem se livrar de Dublin e espalhar os imigrantes por toda a Europa. Seehofer quer empurrar todos de volta para a Áustria. E Kurz diz que vai mandá-los para a Itália e para a Hungria", diz Gerald Knaus.

Aqui em Lampedusa, isso faz com que o debate pareça menos sobre as especificidades da gestão da migração, e mais sobre o abismo crescente entre as forças liberais e não liberais na Europa.

É "uma guerra ideológica", diz Martello, o prefeito."A Europa está dividida em dois blocos principais: um defende as fronteiras e o outro está realmente fazendo alguma coisa para melhorar a situação", afirma ele.

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