Artigo

Vamos brincar

Atualizada em 11/10/2022 às 12h30

Nos idos da infância, eu estranhava o modo maranhense de chamar de brincadeira as manifestações folclóricas, em especial as das festas juninas. Ora, não é certo, como ficam, então, boca-de-forno, pegador, passa-anel... Decidi, não é brincadeira, não. Onde já se viu velho brincar? Brincadeira é coisa de criança. Hoje sei, tive a revelação, no São João de São Luís do Maranhão, adultos e velhos brincam, sim. Não se dança simplesmente bumba-meu-boi, cacuriá, tambor de crioula. Brinca-se. E o cantador-dançador dessas manifestações populares, como não poderia deixar de ser, é o brincante.

E é brincante, também, aquele que participa de festas e de rituais religiosos de matriz africana ou indígena, nos diz Albani Ramos, autor das magníficas fotos que ensejaram o livro Brinquedos encantados, editado pelo Instituto GEIA, livro precioso para quem quer que deseje conhecer ou aprofundar-se nas nossas raízes culturais e suas manifestações, registradas na espontaneidade do seu acontecer.

O dicionário, pai e amigo caridoso de todos os burros, concede que, além de “divertir-se infantilmente”, brincar pode ser “tomar parte em folguedos”, com a indicação de que são carnavalescos esses folguedos e, também - nada a estranhar, já que tudo é folguedo -, “ter relações sexuais”, entre outros significados de menor (?) importância.

Existe coisa melhor no mundo que brincar?Acho que não. As crianças, seres intuitivos, sabem que o brinquedo as transporta a um mundo paralelo - diferente desse perigoso e tão sem graça em que vivemos - um mundo repleto de entes extraordinários, onde tudo de maravilhoso pode acontecer, dependendo da força da imaginação. Por isso, seus olhos brilham à simples menção da palavra mágica, sinônimo de prazer, encanto e mistério. E, quanto a nós, adultos, seres de sensibilidade embotada, o brincar nos remete sempre à infância, quando detínhamos o poder de entrar e sair livremente do país do faz-de-conta, cujo rumo perdemos nos meandros do triste viver pragmático.

E os nossos brincantes? Praticam o fazer infantil, brincar e abstrair o mundo exterior ao redor e mergulhar fundo no da fantasia. Eles, os brincantes, ao som cadenciado de suas matracas e pandeirões, transcendem este mundinho merreca, suas misérias, doenças e guerras, e brincam horas a fio, ultrapassando o dia e a noite, ignorando o cansaço, o calor ou a chuva, com uma resistência que nos espanta, inda mais se vinda de corpos mirrados e mal alimentados.

As batidas das matracas e pandeirões, já ditas repetitivas e cadenciadas, a modo dos tambores de mina ou de crioula, têm um forte componente hipnótico a sugerir o transe; enquanto estes induzem ao recebimento de entidades, aqueles produzem a fenda por onde se tem acesso ao mundo perdido da brincadeira.

Não digo que umas doses de “água de Lula” não deixem de contribuir para a transposição dos umbrais de outras dimensões, mas o que sustenta mesmo esses brincantes é a magia da transcendência, aliada à fé no santo que homenageiam, seja Antônio. João, Pedro ou Marçal, ou algum outro menos em voga, constante ou não das hagiologias da corte celeste oficial.

Jesus, que sabia das coisas do céu e da terra, exaltou as crianças e advertiu-nos que de modo algum entraríamos no reino dos céus - que deve ser parecido com o reino maravilhoso do faz-de-conta - se não nos fizéssemos meninos.

Não percamos mais tempo Aproveitemos, pois, a divina advertência. Entrou junho! Vamos todos brincar.

Ceres Costa Fernandes

E-mail: ceresfernandes@superig.com.br

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