Artigo

A vaca dentro da sala - Uma fábula fabulosa

Atualizada em 11/10/2022 às 12h31

A história não é nova, remonta, talvez, à sabedoria milenar dos alfarrábios indianos. Mas juro que é interessante, talvez alguém não a conheça, talvez haja alguém que a conheça e porventura a tenha esquecido. Eh, bem! Então, conto de novo.

Em uma desimportante cidade do norte da Índia, morava Ravi, um homem sem casta, despossuído de quase tudo, a não ser de uma casinha com uma sala e um quarto, uma vaca que dava um leitinho, no minúsculo quintal, uma mulher desancada de tanto trabalhar e oito meninos magrinhos e olhudos. Diz algum pessimista que o que é ruim ainda pode ser pior, e assim, passava, de quando em vez, um cobrador de impostos que levava de Ravi duas rúpias pela propriedade da vaca.

Não aguentando mais tanta miséria, Ravi vai se aconselhar com um guru de alto saber filosófico. Conta a sua desdita e o desespero crescente e ouve o conselho magno: vá para casa e coloque a vaca dentro da sala. Volte dentro de um mês para outra consulta. O homem saiu aturdido, dentro da sala? A casa é mínima, vivia entulhada de coisas, mal tinha lugar para ele, a mulher e os oito olhudinhos! Guru é guru, não há o que duvidar. Chegou em casa e empurrou Shakuntala, a vaca, para dentro da sala, sob os protestos espantados da mulher.

Aconteceu o esperado, Shakuntala fazia, na sala, tudo o que costumava fazer no cercadinho, o cheiro se tornou insuportável e a casa se encheu de moscas. E mais: a vaca comeu a palha do colchão onde dormiam cinco dos oito olhudinhos, mastigou a roupa de ir ao mercado, e derrubava panelas e a pouca louça com o rabo. Shakuntala, confinada, parece que ficou nervosa, emagreceu, e começou a dar menos leite. Os olhudinhos também emagreceram e os olhos cresceram mais ainda.

Passou-se um mês de vendaval. Apertaram-se mais no quartinho, Ravi, a mulher, etc. Ao final, Ravi, de olhos fundos de não dormir, mais arrasado que nunca, volta ao guru. Ele ouve os queixumes redobrados e, sem se mexer, só responde isto: tire a vaca da sala. Ravi, sem entender tão alta filosofia, não retruca e obedece. Retorna Shakuntala ao cercadinho. Varrem a sala, juntam os cacos, lavam-na, as moscas desaparecem, e a sala, embora de paredes rachadas, reaparece no seu esplendor. O cubículo cresce, a casa se torna outra.

O ânimo melhora. Estão felizes! O guru é mesmo um homem sábio. É verdade que têm de comprar mais pratos e tigelas. Arranjar mais panelas com as vizinhas, Shakuntala amassou as duas. Mendigar alguma roupa para substituir as mastigadas e consertar os bancos e a mesa de três pernas, agora com apenas duas, engordar a vaca e os meninos. Ravi, no entanto, está bastante aliviado. Eu diria que está um tanto eufórico. .

Sendo assim, acabo aqui. Entrou pelo bico do pato, saiu pelo bico do pinto, seu Rajá mandou dizer pra contar mais cinco.

Ah! Qualquer semelhança com a historinha de Ravi o guru e a vaca com o que aconteceu em um país endividado do cone sul, não é mera coincidência.

Ceres Costa Fernandes

Mestra em literatura e membro da Academia Maranhense de Letras

E-mail: ceresfernandes@superig.com.br

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