De "bico" a fonte de renda

De greves a estádios: sorveteiros de caixote sobrevivem ao tempo

Atores do cenário urbano da histórica São Luís, eles oferecem o tradicional sorvete de coco e ganham a vida por décadas, mantendo uma tradição quase secular; quem anda pelas ruas do Centro, principalmente, pode apreciar

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h33

[e-s001]“Olha o sorveteeeeeeeeeeeeee, sorvete de coco!!! Olha aqui o sorveteeeeeeeee... Tem pra todo gosto...”. Pessoas com pelo menos quatro, cinco, seis, sete décadas de vida devem ter ouvido, ao menos uma vez, por alguma rua ou alameda de São Luís, um grito semelhante a este. Tradicionalmente são (ou foram) bradados por um tipo peculiar de pregoeiro: o sorveteiro de caixote, cujas histórias passam por estádios de futebol, prostíbulos e locais de greves.

Atores do cenário urbano, é possível ainda encontrá-los nas vias da cidade. Eles, que ganham um “troco” por décadas, mantendo o costume de colocar o sorvete com a famosa colher de sopa, pegando o produto da caixa térmica e o equilibrando em uma deliciosa casquinha comestível de biscoito. Uma das obras que mostra características únicas dos sorveteiros de caixote de São Luís é “Pregoeiros & Casarões”, exemplar de aproximadamente 700 páginas, com 2.330 fotos que mostram a cidade de São Luís, entre os anos de 1950 e 1979, por meio de textos e imagens originários de uma extensa pesquisa histórica.

A tradição de se revender e consumir sorvetes desta maneira, remonta à época pós-escravocrata, quando os descendentes de africanos, em sua maioria, saíam pelas ruas e avenidas em busca de fontes de renda. “Tradicionalmente, neste período, já há registros desse tipo de personagem”, disse o historiador e professor da rede pública estadual, Antônio Guimarães, autor do livro “Pregoeiros & Casarões”.

Sem a caixa térmica atual, o produto era armazenado de forma criativa, usando velhos barris de vinho, além de palhas de arroz e sal grosso. “Estes itens eram para manter a temperatura e consistência do sorvete, que era guardado em depósitos de guardar manteiga antigos”, explicou o historiador.

Antes da possibilidade de se comercializar o sorvete na temperatura mais comum - já que as primeiras fábricas de gelo somente chegaram à capital maranhense no início do século XX -, os vendedores ofereciam uma espécie de doce frio, feito do coco, predominantemente. Segundo historiadores, foi a partir do doce que surgiu o sorvete artesanal de coco, considerado um produto genuinamente ludovicense. “Você pode ir para várias partes do Brasil, mas você somente vai encontrar este sorvete, feito desta maneira como é feito hoje, e vendido desta forma, aqui em São Luís”, disse o historiador Antônio Guimarães.

Preocupação sanitária
Com a ascensão das fábricas de gelo, ao longo do tempo a função de sorveteiro ganhou adeptos e fãs do sabor peculiar do produto. Com a disseminação de pessoas que comercializavam o sorvete de forma caseira, em determinados momentos foi necessária a interferência do poder público para controlar a atividade. Em 1976, uma reunião que contou com representantes dos sorveteiros e da Divisão de Fiscalização Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde (SES), em São Luís, concluiu que, a partir do dia 1º de agosto daquele ano, todos os sorveteiros da cidade passariam a ser identificados.

Além da identificação, os trabalhadores também teriam que seguir regras de boa higiene, já que muitas fábricas em que eram produzidos os sorvetes não dispunham das melhores condições sanitárias. Esta polêmica foi, inclusive, registrada por O Estado, que esteve presente na reunião para tratar do assunto, realizada na sede do Sindicato dos Sorveteiros.

[e-s001]De torcedores a prostitutas
Após a regularização, os sorveteiros se concentravam em locais conhecidos da cidade, como a Praça João Lisboa e o Largo do Carmo. Outro local bastante conhecido pela presença dos sorveteiros com sorvetes artesanais de coco era o antigo Estádio Santa Isabel, no Canto da Fabril, em São Luís. O historiador e professor Antônio Guimarães cita inclusive a presença, nos arredores do campo de futebol, de uma fábrica de produção de sorvete, em meados das décadas de 1960 e 1970. “Onde hoje existe uma fábrica de gesso, no Canto da Fabril, era onde funcionava a fábrica cujo sorvete era conhecido como o sorvete do Dedé”, citou.

O professor cita ainda outro ambiente peculiar onde eram comercializados, no mesmo período, os sorvetes. “Nos cabarés, durante a folga das madames e das prostitutas, os sorveteiros tinham acesso livre e serviam estas clientes que, diga-se de passagem, eram fieis e sempre requisitavam o sorvete”, disse Guimarães.

Na “Balaiada Urbana”
Conhecida também como a “Greve de 1951”, que mobilizou diversos setores da sociedade na capital maranhense contra o governo vitorinista, a “Balaiada Urbana” também contou com a figura, em seus arquivos fotográficos, do sorveteiro, que estava presente “aliviando o calor” especialmente dos soldados convocados para atuar no movimento.

Receita
Antes da ascensão de maquinários e da produção em larga escala, o sorvete era feito integralmente de maneira artesanal, raspando o miolo do coco, por exemplo, em raladores de milho. Para adicionar consistência à mistura, era acrescentada fécula de macaxeira à preparação, além de açúcar granulado, já que ainda não existia, nos primeiros anos de fabricação, o açúcar granulado. O conteúdo do coco era inclusive retirado sem a chamada sobrecasca, ou a parte mais escura da matéria-prima.

A partir daí, de acordo com os historiadores, era conservado o sabor natural e essencial do sorvete, que atualmente recebe ingredientes como trigo e amido de milho para “engrossar” a delícia.

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