Artigo

De peixes e solidão

Atualizada em 11/10/2022 às 12h33

Quanta companhia nos faz um peixe? Nenhuma, dirão alguns; dentro d’água, nadando, traz tranquilidade, diriam outros; bastante mais do que a presença do meu marido, dirá a mulher desamada. Alguns glutões materialistas - conheço alguns - podem preferir a companhia efêmera, enquanto dura uma degustação, do peixe frito com arroz de cuxá. A resposta é complexa, envolve solidão, coisa fina e dorida. Difícil de lidar.

E, então? A propósito de que esta pergunta despropositada? Veio da leitura de umas cartas... Alguém ainda escreve cartas, criatura? Nem os Correios se animam a entregá-las mais... Sabem aquela propaganda antiga que dizia: Os Correios entregam cartas nos endereços mais estranhos, assim, na Rua Direita, primeiro canto, dobrar à esquerda, atravessar três ruas e, defronte de um pé de caju, está o nº 13, da D. Ritinha. Pois sim, remeta uma carta sem CEP e veja o que acontece, nem o procuram na Internet. Devolvem a cuja cheia de carimbos, destinatário não encontrado. Em áreas perigosas, mesmo com o CEP, não vão lá. Carteiro-herói enfrenta cachorro, diz o folheto, mas bandido já é demais.

Penso que o gênero epistolografia se acabou. Que fariam, hoje, Abelardo e Heloisa, Fernando Pessoa e Ofélia, Sóror Maria Alcoforado, Carlos Drummond e Mário de Andrade? Penso que os casais enamorados e a freirinha ardente trocariam as confissões manuscritas, tão frias, pelo celular. A voz aquece o amor. Trocariam emojis: um coração pulsando! O par de grandes escritores certamente pertenceria a um grupo de whatsaap de literatura. Não sobraria nada no baú para a posteridade bisbilhotar e editar.

Ora, estou a enveredar por caminhos outros. Que cartas são estas que eu li? Aquelas que as crianças escrevem para Papai Noel - mito perverso pra deixar criança pobre esperando brinquedos que não terá - e que são “respondidas” por pessoas dispostas a colaborar com os sonhos dessas crianças.

Os Correios promovem esse contato epistológrafo entre as crianças e adultos imbuídos, digamos, de espirito natalino. A mecânica é assim: as crianças escrevem para Papai Noel com o pedido e o endereço para entrega; as pessoas vão ao correio, leem e escolhem as cartas, deixam os pacotes dos presentes, identificados com os números das cartas, ao pé da árvore armada lá na agência. De lá, véspera de Natal, os funcionários, com muita pompa, levam os presentes em caminhões para a entrega.

Sentei e li algumas cartas. Muitas pedindo celular e jogos eletrônicos. Colaborar com a alienação? Huum, não. Ainda mais, querem Iphones e jogos caros. Não é para meu bolso. Algumas, mais factíveis, pedem helicópteros, bonecas, dinossauros, bolas de futebol. Melhor.

De repente, Joanilsson, 8 anos, pede um peixe, isso mesmo, um peixe. Para fazer companhia a ele e a sua avó, que moram sós. Puxa, não é um cachorro, um gato, mas um peixe. Obviamente dentro de um aquário. Ele não especifica. Fico com vontade de atender. E se alguma loja montasse o aquário na casa do menino? Quebra o sistema de entrega, é uma exceção. E a manutenção, alimento, luz. E se o peixe morrer antes? Descartei o peixe.

Atendi a outros pedidos. Mas o peixe não me saiu da cabeça. Nem a solidão dos dois. Os pais morreram? Separaram-se? Abandonaram o menino? Hoje, cada vez mais, avós criam netos, cercando-os de muito amor e dedicam a eles o tempo que os pais não mais possuem. Os resultados são bons e desmentem a expressão pejorativa “criado(a) por avó”. Gostaria de saber se Joanilsson ganhou o seu peixe.

Ceres Costa Fernandes

E-mail: ceresfernandes@superig.com.br

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