Luto no jornalismo e literatura

Morre José Louzeiro, pioneiro no gênero literário romance-reportagem

Escritor maranhense, de 85 anos, faleceu na madrugada de sexta-feira,29, na casa da filha dele, no Rio de Janeiro; velório e enterro acontecem neste sábado

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h33
Colaborador do jornal O Estado, José Louzeiro morreu em consequência de vários problemas de saúde
Colaborador do jornal O Estado, José Louzeiro morreu em consequência de vários problemas de saúde (Colaborador do jornal O Estado, José Louzeiro morreu em consequência de vários problemas de saúde)

O escritor e jornalista ludovicense José de Jesus Louzeiro, de 85 anos, pioneiro no país no gênero literário romance-reportagem, morreu na madrugada de sexta-feira,29, no Rio de Janeiro (RJ). Segundo familiares, a causa da morte do colaborador de O Estado foi uma parada cardiorrespiratória em decorrência de vários problemas de saúde enfrentados por Louzeiro. O velório do escritor, que ocupava a Cadeira nº 25 da Academia Maranhense de Letras (AML), acontece neste sábado,30, e o enterro deverá ocorrer no mesmo dia no Cemitério do Caju, na capital carioca. Ele deixa cinco filhos.

Dono de um jeito peculiar de escrever, José Louzeiro se destacou pela capacidade de relatar assuntos que retratavam a realidade brasileira, sem perder o encanto com a ficção em vários momentos e protagonizando personagens que, por ora, são excluídos pela maioria das pessoas, como prostitutas e moradores de rua. Nascido no dia 19 de setembro de 1932, em São Luís, ele começou cedo a sua carreira. Aos 16 anos, já atuava como revisor em jornal impresso da capital maranhense. Pouco tempo depois, começou a escrever matérias e logo enveredou para o jornalismo, ocupando o cargo de repórter de Polícia, uma de suas paixões.

A sua escrita e os temas escolhidos para as suas reportagens o tornaram como um dos jornalistas mais bem-quistos de seu tempo. No jornal O Combate, veículo que mantinha oposição ao governador Vitorino Freire e com forte influência política nas décadas de 1940, 1950 e 1960, José Louzeiro ganhou um prêmio por uma reportagem que falava sobre um carpinteiro e militante político conhecido como Cantanhede, morador da Maioba.

Se a peça jornalística trouxe, por um lado, o reconhecimento em forma de prêmio, por outro lado o assunto rendeu entre diferentes camadas sociais à época, obrigando o escritor e jornalista a se mudar para o Rio de Janeiro. Com saudades da “mamãe Mundiquinha” e da vovó Dorotéia, seus amores, Louzeiro se transferiu literalmente “de mala e cuia” para o Rio para retomar a carreira.

No Rio, começou como datilógrafo em uma firma alemã, a Oscar Flues. Ao se estabelecer financeiramente, enveredou para empresas de comunicação - Manchete, Diário Carioca, Última Hora e Correio da Manhã. Em São Paulo, Louzeiro também trabalhou na Folha e no Diário do Grande ABC. Nestes veículos, atuou como repórter de Polícia por quase duas décadas.

Obras inesquecíveis

As grandes reportagens que retratavam a rotina de violência nas ruas e avenidas paulistas e cariocas no período áureo da Ditadura Militar renderam a publicação de obras inesquecíveis. Dentre as principais, estão Pixote, infância dos mortos, que deu origem aos filmes Pixote, a Lei do mais Fraco (1981) e Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (1976). Este último tratou da história de Lúcio Flávio, um dos bandidos mais conhecidos do Rio de Janeiro. A peça audiovisual chamou tanto a atenção que influenciou o cineasta Hector Babenco.

Foi no lançamento de Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia, o registro de uma das histórias mais conhecidas por Louzeiro. Antes da exibição inicial do filme, vários policiais “invadiram o local” exigindo a apresentação dos documentos de todos os presentes, já que havia a suspeita de que o filme “havia sido produzido por bandidos”. O episódio é relatado no curta José Louzeiro: Depois da Luta, dirigido por Maria Thereza Soares e com pesquisa e produção de Bruna Castelo Branco, editora de Alternativo de O Estado. O filme deverá ser lançado em janeiro de 2018.

Após Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia, em 1985, Louzeiro escreveu o roteiro “O Homem da Capa Preta”, que retratou a vida do político Tenório Cavalcanti (ex-deputado federal e estadual do Rio de Janeiro e conhecido por seu perfil violento, segundo a biografia). O filme foi protagonizado José Wilker e condecorado no Festival de Gramado no mesmo ano do lançamento. Louzeiro também produziu filmes com Jece Valadão e Bruno Barreto e foi colega de redação de Nelson Rodrigues no Última Hora.

Outro livro de destaque de Louzeiro foi “Em Carne Viva”, em 1988, que retratou a morte do estudante Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel. Louzeiro escreveu também novelas, como Corpo Santo (1987), Olho por Olho (1988) e Guerra sem fim (1993). Em 2010, escreveu a obra que contou a história da cantora Elza Soares, que fala da vida e obra da artista, desde a infância, passando pela tumultuada relação com o jogador Garrincha.

Além de escritor, também foi presidente do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro entre os anos de 1984 e 1987, membro do Conselho Nacional do Direito Autoral (1985-1986), do Conselho Superior de Censura (1987) e do Conselho de Direitos Humanos e Liberdade de Expressão da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), também em 1987. Foi agraciado ainda com a Medalha do Mérito Timbira, a mais alta condecoração concedida pelo Maranhão.

Respeito à obra

Durante toda a carreira, José Louzeiro colecionou fãs e admiradores. A ex-governadora Roseana Sarney lamentou a morte de Louzeiro. “Uma grande perda para o Maranhão e para o Brasil. José Louzeiro foi um marco na nossa cultura, com sua imensa contribuição como jornalista,
roteirista, como referência no cinema em filmes como ‘Pixote, a lei do mais fraco; Lúcio Flávio, passageiro da agonia”, lembrou .

Para Roseana, a obra de Louzeiro ficará marcada. “Foi-se um mestre mas fica eternizada a sua história não apenas para aqueles que o conheceram, mas também para os que terão a oportunidade de valorizar e admirar o maranhense que foi um dos maiores nomes da nossa arte no último século. Solidarizo-me com a família, amigos e todos aqueles que tiveram a honra de compartilhar a vida com José Louzeiro”, concluiu.

O presidente da Academia Maranhense de Letras (AML), Benedito Buzar, expressou seu respeito à obra de Louzeiro. Para Buzar, trata-se de um escritor único. “Foi um choque para toda a comunidade literária e é uma perda inestimável para todos nós”, disse. Buzar foi um dos grandes amigos de Louzeiro e acompanhou boa parte da carreira do escritos ludovicense. Ele reafirmou que Louzeiro foi um revolucionário, pois seus textos eram, em sua maioria, contrários ao sistema vigente no país. “Foi um crítico de ideais da Ditadura [Militar] e sempre se pôs em defesa das minorias”, disse.

Para Joaquim Haickel, o Estado perdeu um dos grandes nomes na literatura e cinema. “O Maranhão perdeu um de seus grandes artistas e o cinema maranhense perdeu o seu maior expoente: José Louzeiro. Conheci Louzeiro em 1983 quando fazíamos a Revista Guarnicê. Apaixonado por cinema, eu o escolhi como guru e mestre. Sentiremos muito a sua falta!”, escreveu em sua página no Twitter.

Em uma das entrevistas concedidas a O Estado, em São Luís, o escritor falou sobre o livro “Lições do Amor”, uma homenagem à professora dele, Maria Freitas. O jornalista credita a ela todo o seu conhecimento das palavras e escrita. “Aos domingos, enquanto crianças iam se divertir na praia ou em outros lugares, Louzeiro se encaminhava até a casa da professora Maria [Freitas] com palavras anotadas em papel para que a mestra, como ele mesmo a definia, dissesse o significado daquelas palavras. O dom da escrita nasceu com Louzeiro”, disse Maria Thereza Soares, diretora do filme José Louzeiro: Depois da Luta.

Na reportagem, Louzeiro expressou sua admiração à professora Maria Freitas. “Se eu não a conhecesse, não teria despertado para a leitura, talvez nunca fosse escritor. Quando eu fui estudar no Colégio São Luís, eu conheci a Maria Freitas. A maioria dos coleguinhas não gostava dela. Era muito séria, dava aula de pé, nunca sentava e era dura. Eu me entusiasmei com o contato com ela. Ela começou a me indicar livros. Eu ia à Biblioteca Pública, que era localizada onde hoje é a Academia Maranhense de Letras, da qual eu participo. Aí, eu fui virando gente, graças a Maria Freitas”, disse.

Louzeiro falou ainda sobre censura a suas obras, como Aracelli, Meu Amor. Durante a reportagem, ele falou sobre o seu amor à vida. “No dia 19 de setembro [de 2012], o seu amigo aqui vai completar seus primeiros 80 anos. Os primeiros, pois eu pretendo viver vários 80 anos. Adoro viver”, disse.

Um eterno otimista

A cuidadora de Louzeiro, Lucimar Rodrigues Silva, lembra com carinho do escritor. Para ele, Louzeiro é um otimista incorrigível. “Ele falava mesmo que viveria mais uns cem anos. Era muito ele falar assim”, disse.

Crônicas reunidas

José Louzeiro, mesmo com a saúde debilitada, ainda produzia. Ele preparava a sua biografia – que será finalizada pelos cinco filhos dele – e a reunião de crônicas escritas e publicadas em O Estado. “Ele estava muito empolgado com o projeto e sabia da responsabilidade”, disse Milton Sesserman, casado com Luciane, filha de Louzeiro.

Filme para José Louzeiro

Concebido por meio de uma parceria entre o Governo do Maranhão e a Agência Nacional de Cinema (Ancine), o filme José Louzeiro: Depois da Luta é um curta de aproximadamente 15 minutos que contará, em vários depoimentos, boa parte da vida e obra do escritor. Além de Maria Thereza Soares (direção) e Bruna Castelo Branco (pesquisa), a direção de fotografia da peça é assinada por Paula Monte e Paulo Malheiros.

A pré-produção começou a ser feita em 2015 e as filmagens foram feitas em São Luís e no Rio de Janeiro. A produção deve contar com depoimentos da agente literária Ednalva e de cineastas como Sérgio Rezende, José Joffily e Jorge Duran. “Foi uma peça incrível, que conta histórias do autor desde os tempos dele na Camboa do Mato tão falada por ele, passando pelas dificuldades até o reconhecimento nos grandes veículos de comunicação do país”, frisou Maria Thereza Soares.

Frase

“No dia 19 de setembro [de 2012], o seu amigo aqui vai completar seus primeiros 80 anos. Os primeiros, pois eu pretendo viver vários 80 anos. Adoro viver”,

José Louzeiro

Jornalista e escritor

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O escritor José Louzeiro

repassa suas memórias

A jornalista Bruna Castelo Branco, editora do Caderno Alternativo, de O Estado, conversou com Louzeiro em seu apartamento no Rio de Janeiro, em março de 2014. O seu relato sobre o escritor maranhense

Em um apartamento localizado em um prédio antigo no Centro do Rio de Janeiro, perto da Igreja do São Francisco, entre o badalar dos sinos e a agitação natural de uma grande cidade, que o escritor e jornalista maranhense José Louzeiro dedica parte do seu tempo a uma nova missão literária: escrever o seu livro de memórias.

A obra ainda não tem previsão de lançamento e é feita sem pressa, pois o escritor, autor de mais de 50 livros - com destaque para as obras importantes como Pixote: A Lei do Mais Fraco, Aracelli, meu amor e a biografia Cantando para não enlouquecer, de Elza Soares -, admite ser um exercício complicado o ato de escrever suas memórias. "É difícil falar de mim. Acho que vou escrever no livro sobre o que eu gostaria de fazer e não fiz. Estou escrevendo sem pressa", brinca.

No apartamento em que mora e onde escreve suas lembranças, vários elementos trazem referências cinematográficas e literárias aos visitantes e ajudam a contar a trajetória do escritor. Quadros com cartazes dos filmes Lúcio Flávio - o passageiro da agonia, O Homem da Capa Preta, Pixote-A Lei do Mais Fraco (Louzeiro assina o roteiro das obras), retratos do autor pintados por vários artistas plásticos, incluindo o amigo maranhense Jesus Santos, além de diversos livros de conterrâneos (pude observar obras de Luis Augusto Cassas e Bruno Azevêdo), além de fotografias em um mural onde está afixada também uma cópia de um texto dele publicado no jornal O Estado. "O caderno [de cultura] de vocês está muito bonito", diz, em referência ao caderno Alternativo.

Visita

Nesse cenário com referências tão particulares, o escritor, pioneiro do romance-reportagem no Brasil, recebeu O Estado, às 10h30 de uma quinta-feira, não para uma entrevista, mas para um bate-papo, como quem recebe um amigo.

Logo na portaria do prédio, à espera da equipe estava Ednalva Tavares, agente literária do mestre e companheira dele nessa e em outras vidas. Bem-humorado, ele nos recebe com um: "Desculpa não receber você de pé", em referência à perda do pé esquerdo e da perna direita em decorrência de complicações do diabetes.

Como esperado, a conversa não é marcada por formalidades. Sobre a biografia, Louzeiro adiantou pouca coisa, mas contou histórias da carreira como jornalista tanto no Maranhão quanto no Rio de Janeiro, relembrando alguns personagens importantes, entre eles, o jornalista Nonnato Masson. "Ele me ajudou muito quando eu comecei a minha carreira no jornalismo policial", recorda.

Além do jornalismo e as perseguições que sofreu na época da Ditadura Militar e que o fez trocar São Luís pelo Rio de Janeiro, outros assuntos foram surgindo com a naturalidade de uma conversa descontraída regada a xícaras de café. "Eu adoro café, se deixar eu tomo o dia todo", comenta, para depois voltar a falar sobre as perseguições que sofreu no Governo de Vitorino Freire. “Desse aí eu faço questão de falar. No meu livro eu deito e rolo”, adianta.

Histórias dos pais, infância, carreira como roteirista cinematográfico e a repercussão do filme Lúcio Flávio - o passageiro da agonia, lançado em 1976, com roteiro dele, direção de Hector Babenco e estrelado pelo então jovem ator Reginaldo Faria - que se despia da imagem de galã para interpretar o ladrão de banco, famoso nos anos 1970 e que foi perseguido pelo esquadrão da morte da Polícia - são alguns dos assuntos do livro.

"Foi uma fila para assistir à estreia do filme. Na época fui muito criticado, me acusaram de tratar o Lúcio Flávio como herói e não dar espaço para quem o prendeu. O Lúcio Flávio era um personagem muito mais interessante", conta.

Sobre a produção do cinema no Brasil atual, o escritor e roteirista tem a mesma opinião de Hector Babenco, parceiro dele tanto em Lúcio Flávio como em Pixote. Para eles, a produção de cinema esbarra tanto na falta de patrocínio quanto na ausência de salas para exibição. "A gente faz um filme hoje e ele não vai passar nas salas comerciais. São escassos os bons cinemas", avalia.

Ainda sobre cinema, demonstra curiosidade sobre as novas produções no segmento desenvolvidas no Maranhão. Em especial, gostaria de assistir ao filme O Exercício do Caos, lançado ano passado pelo cineasta Frederico Machado e planeja desenvolver um curso de roteiro em São Luís, um projeto antigo, mas que ainda não aconteceu por falta de parceiros.

E como toda boa conversa passa rápido, com o badalar do sino da Igreja anunciando o meio-dia, nos despedimos do Mestre, deixando-o relembrar suas memórias e torcendo para que esse livro, reunindo tão boas histórias, seja logo lançado.

Mais

Em 2013, foram relançados pela Editora Prumo dois livros do autor. O primeiro foi Aracelli, meu amor, lançado em 1976 e que relata de forma romanceada a morte da menina Aracelli Cabrera Crespo, assassinada por jovens da classe média de Vitória (ES), e o segundo foi Os Amores da Pantera, lançado originalmente em 1982, que narra o assassinato de uma bela socialite e também mostra um pouco do comportamento da sociedade brasileira nos anos 1970.

NOTA DE JOSÉ SARNEY

José Louzeiro

É com grande tristeza que tomo conhecimento da morte de José Louzeiro.

Fomos colegas de estreia jornalística, trabalhando os dois em O Imparcial. Mas logo Louzeiro foi para o Rio de Janeiro, onde passou por todos os jornais importantes, numa grande carreira. Escritor, mas antes de tudo repórter, ele nos deixou uma obra importante pelos mergulhos profundos nas entranhas da violência no país, que denunciou como ninguém, na literatura, na imprensa e na televisão. O Brasil lhe deve o mais dramático retrato da infância despedaçada, com seu Pixote.

Perdemos, na Academia Maranhense de Letras, um companheiro de grande qualidade intelectual e um ser humano profundamente dotado de fome e sede de justiça.

José Sarney

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