Pensador

Voltaire se aproveitou de falha nas regras da 1ª loteria da França

Com o dinheiro, pensador comprou independência e liberdade para desagradar poderosos

Atualizada em 11/10/2022 às 12h34

PARIS - O pensador francês Voltaire - ou François-Marie Arouet - é lembrado por seu talento como escritor, por seus ataques à Igreja Católica e pela defesa da liberdade de crença e expressão.

Escreveu obras de teatro, poemas, romances, ensaios, livros científicos e históricos. Mas provavelmente não teria feito tanto se não fosse a loteria da época.

Afinal, como diria a escritora britânica Virginia Woolf dois séculos mais tarde, para poder escrever é preciso ter dinheiro e casa própria.

Voltaire era consciente disso. Em suas Memórias (1759), diz ter conhecido tantos escritores "sem dinheiro e desprezados" quando jovem que decidiu que não faria parte desse grupo.

Ele não nasceu pobre, mas gastava mal o que tinha e se tornou amante dos jogos de azar ainda na juventude. Em 1722, contou a uma amante que perdera bastante dinheiro jogando cartas, cumprindo o costume "de ficar sem um centavo uma vez por ano".

Nesse mesmo ano morreu seu pai, que no testamento determinou que Voltaire, o filho caçula, só deveria receber sua parte da herança ao completar 35 anos.

Quando esse dia chegou, porém, ele já havia ganhado na loteria, conta Roger Pearson, autor de Voltaire Todo-poderoso: Uma Vida em Busca da Liberdade, na revista Lapham's Quarterly. Mas não tratou-se meramente de um golpe de sorte.

Letras miúdas

Se você quisesse fazer uma fortuna na França, observou Voltaire mais tarde, bastaria ler as letras miúdas. Em 1719, o país sofreu uma crise financeira que, de certa forma, lembra as enfrentadas no nosso século 21. Primeiro, os bancos inventaram instrumentos financeiros que deram uma falsa impressão de abundância. Com isso, gerou-se uma bolha que, obviamente, acabou explodindo, deixando a França à beira da bancarrota.

Diante disso, o governo buscou formas de reduzir sua dívida, o que o levou a pegar empréstimos indiretos.

Uma das soluções para encher os cofres foi criar uma loteria, assim como o Parlamento inglês havia feito em 1694. Lá, o objetivo de arrecadar um milhão de libras tinha sido alcançado com sucesso, inspirando iniciativas similares por toda a Europa.

Na França, foram então emitidos títulos das dívidas da Prefeitura de Paris, e só os donos dessas cotas poderiam participar da loteria.

Voltaire era um deles - e voltou sua atenção para as regras. Durante um jantar, conversou sobre elas com um amigo, o pensador e matemático Charles-Marie de La Condamine.

O que os intrigava era que os bilhetes custavam um milésimo do valor da cota da dívida. Ou seja, se você era dono de uma cota pequena, era possível comprá-los por preços muito baixos - se ela valia mil francos, por exemplo, cada bilhete iria lhe custar apenas um franco. No entanto, tinha as mesmas chances de alguém que tivesse um título cem vezes mais caro, mas pagando muito menos por isso.

Eles então se perguntaram o que ocorreria se eles comprassem todos ou a maioria dos bilhetes assim que fossem lançados, por apenas um franco cada. Para isso, precisariam de todas a cotas de pouco valor existentes, o que demandaria se juntar a outras pessoas.

O grupo comprou todos os bilhetes. Resultado: levou um milhão de francos.

O próprio Voltaire falou sobre o feito, em terceira pessoa, no autobiográfico Comentário Histórico sobre as Obras do Autor de 'Henriada', publicado em 1976:

"As autoridades emitiram bilhetes em troca dos títulos do Hotel de Ville (prefeitura), e os ganhadores foram pagos em dinheiro, de tal maneira que o grupo de pessoas que comprou todos os bilhetes ganhou um milhão de francos. Voltaire se associou a inúmeras pessoas e teve sorte."

Nasce um esquema

A loteria foi sorteada no oitavo dia de cada mês a partir de janeiro de 1729. Todos os registros dos concursos realizados até fevereiro de 1730 ainda existem, lembra o escritor Roger Pearson.

No primeiro sorteio, diz ele, os prêmios foram pagos de maneira pulverizada, como devia ser. Mas já no segundo isso começa a mudar: há um grande aumento no número de ganhadores com bilhetes comprados pelo menor valor requerido, e vários deles registrados sob o mesmo nome.

Condamine, por exemplo, ganhou 13 mil francos com 13 bilhetes que haviam lhe custado um franco cada um.

Em outubro, afirma Pearson, o prêmio de mais de 1 milhão de francos foi dividido entre 13 ganhadores, todos velhos conhecidos - já haviam levado boladas antes.

Quando as autoridades notaram a brecha, mudaram as regras. Mas estima-se que a essa altura Voltaire já havia acumulado cerca de meio milhão de francos.

Em algum momento, o então controlador-geral de Finanças, Michel Robert Le Peletier des Forts, denunciou o grupo sob a acusação de agir ilegalmente, mas o conselho real declarou que as pessoas não haviam violado nenhuma regra: a loteria é que havia sido mal concebida.

Um homem de negócios

Depois de juntar a fortuna, Voltaire quis mais. No Estado semi-independente de Lorraine, aproveitou-se de que as autoridades buscavam arrecadar recursos por meio de títulos de dívidas em condições vantajosas para os compradores. Ele arrematou 50 cotas e as revendeu pelo triplo do preço.

Em Paris, investiu grandes quantias de dinheiro em negócios de suprimentos para o Exército. "Nosso grande poeta sempre manteve um pé no Monte Parnaso e outro na rua Quincampoix", disse certa vez o marquês D'Argenson, um de seus amigos (a Quincampoix era a Wall Street da Paris do século 18).

Com o dinheiro, Voltaire comprou sua independência e a liberdade de escrever o que queria no conforto do lar que ia construindo em outro lugar sempre que suas palavras não eram bem recebidas pelos locais.

Em Champagne, viveu em reclusão idílica com sua então amante, a brilhante cientista Émilie du Châtelet. Depois mudou-se para a então cidade-estado de Genebra, na atual Suíça. Quando os calvinistas rejeitaram suas obras de teatro, voltou para a França, se instalando no castelo de Ferney.

Morreu em 1778, tendo passado à história como um dos grandes heróis do Iluminismo e defensor dos direitos humanos.

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