Comentário

Justiça seja feita: série de TV foge do lugar comum

Com texto de Manuela Dias, autora que também assinou “Ligações Perigosas”, a série "Justiça" acertou por por ter tirado o foco do eixo Sul-Sudeste e por ter fugido do lugar comum

Ney Farias Cardoso / Da equipe de O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h45
Justiça, série da TV Globo
Justiça, série da TV Globo (SÉRIE JUSTIÇA )

Faz tempo que cheguei à seguinte conclusão: se a Rede Globo muitas vezes fica sem saber o que fazer com suas novelas – como aconteceu com o final meio atropelado de “Liberdade, Liberdade” por causa das Olimpíadas –, em matéria de obras de fôlego mais curto ela mostra um grau de excelência que as concorrentes jamais conseguirão igualar, por mais que recorram a episódios bíblicos.

No primeiro semestre, não perdi um só capítulo das duas semanas de “Ligações Perigosas”. Baseada no romance epistolar homônimo de Chordelos de Laclos, a minissérie possibilitou um banho de atuação dos consagrados Selton Mello e Patrícia Pillar. Enquanto acompanhava as sórdidas peripécias dos personagens principais, cheguei à conclusão de que, às vezes, não há por que louvar as produções norte-americanas (“House”, “The Big Bang Theory”) quando temos excelentes produzidas aqui no Brasil. Aí está “Velho Chico” para não me deixar mentir. A melhor novela já levada ao ar desde “Avenida Brasil”.

E também tivemos “Justiça”, que infelizmente chegou ao fim semana passada.

O rapaz que mata a namorada após flagrá-la transando com o ex-namorado dela. A mãe que, depois de perder o marido esfaqueado numa briga de bar, mata o cachorro que mordeu seu filho e depois é falsamente incriminada pelo dono do bicho, um policial desonesto e totalmente dominado pela mulher prostituta. A jovem negra que, além de ser vítima de racismo, é presa por portar entorpecentes horas antes de se matricular na universidade. O contador que pratica eutanásia na esposa porque esta se recusou a viver paralisada após ter sido atropelada pelo mesmo escroque que viria mais tarde a se candidatar a governador.

Todas essas figuras, detidas na mesma noite e libertadas no mesma tarde sete anos depois. E não seria apenas esse detalhe que teriam em comum. Os quatro caminhos acabariam se cruzando, por um lado de maneira calculada e por outro de forma totalmente inconsciente. Prova disso foi a cena do sepultamento de Vania (Drica Moraes), no último episódio, sexta-feira. Enquanto Antenor (Antonio Calloni) e seu filho Teo (Pedro Nercessian) eram cercados pela imprensa, passavam ao largo dois cortejos fúnebres: o do pobre Vicente (Jesuíta Barbosa) e, mais atrás, o do irmão estuprador de Firmino (Julio Andrade).

Acima de tudo, acho que esse foi o grande diferencial de “Justiça”: mostrar que as pessoas não estão assim tão isoladas, neste mundo e nesta vida. As decisões que tomamos no dia a dia acabam afetando vidas e destinos. Estamos mais interligados do que imaginamos. O texto de Manuela Dias – que, aliás, assina “Ligações Perigosas” - explorou isso muito bem. Claro que houve alguns problemas. Muitas situações foram difíceis de digerir. Um exemplo: só mesmo na ficção (e olhe lá) uma pessoa pode ter a ideia triste de atravessar uma rua de grande movimentação com passos de bailarina. Ou então o da personagem de Débora Bloch, Elisa, que depois do acidente acionou pelo celular o serviço de emergência e só então se lembrou que desde o princípio a ideia era assistir à morte do assassino de sua filha.

Apesar desses pesares – e “justiça seja feita –, a autora acertou em cheio. Em primeiro lugar por ter tirado o foco do eixo Sul-Sudeste. De vez em quando, é bom mostrar que o resto do país existe. Ainda mais o Nordeste, que sempre propiciou grandes momentos na história da teledramaturgia da Globo.

Outra grande sacada foram as “inconclusões” mostradas nos episódios. Regina (Camila Márdila) praticando tiro ao alvo significou que ela pretende matar Elisa por entender que a professora universitária foi a responsável pela morte de Vicente? Fátima (Adriana Esteves) teve o tradicional final feliz com Firmino. Mas sua filha, Mayara (Julia Dalavia), continuou prostituta. Rose (a jovem negra interpretada por Luisa Arraes) engravidou de Celso (Vladimir Brichta), dono de bordel que mesmo sofrendo um desfalque financeiro da prostituta Kellen (Leandra Leal) foi um dos que acabou de bem com a vida no fim da trama. E o que acontecerá com Débora (Luisa Arraes), que conseguiu matar o homem que a estuprou, e Maurício (Cauã Reymond), que ficou com todo o destino feito livro aberto pela frente depois de ajudar seu adversário, Antenor, a cair em desgraça? Teremos respostas a estas e outras questões se Manuela Dias pensar numa continuação. Só nos resta esperar.

*Ney Farias Cardoso é revisor de O Estado

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