Crônica

Por que dos holandeses?

Joaquim Itapary

Atualizada em 11/10/2022 às 12h55

Faz poucos dias, o historiador e cronista Carlos Gaspar em texto irreprochável, indaga à sociedade e, principalmente, às autoridades municipais, qual a justificativa para o ato que denominou de “Avenida dos Holandeses” a mais importante via da expansão urbana de nossa Capital, iniciada no final dos anos 60 do século passado. Faz mais de doze anos, exatamente na data de 15/6/2003, neste mesmo espaço de jornal, que eu formulei pergunta idêntica. E porque a questão subsiste sem justificativa qualquer, republico aquele texto, como se em coro à palavra de Carlos Gaspar,

Segue o texto:

A questão da nomenclatura dos logradouros públicos de São Luís volta e meia é objeto do cuidado de alguém. Principalmente porque aqui há ruas e praças justamente dedicadas a personalidades merecedoras de homenagens públicas, sejam elas maranhenses ou não. Mas há outras – e não são poucas – que levam nomes de pessoas, de fatos sociais, históricos ou até mesmo de circunstâncias toponímicas, sem o menor critério publicamente conhecido que os justifique.

Aos portugueses, aos africanos e aos índios, se devem os valores que embasam e distinguem a nossa cultura. É comum a consciência de que essa pluralidade nos singulariza e identifica. Justo, portanto, que tenhamos importantes avenidas e praças consagradas aos portugueses e africanos. Do mesmo modo, é injusto que a cidade não tenha logradouros dedicados aos indígenas, principalmente porque nenhum outro povo pagou tão caro e dolorosamente o compulsório exercício do trágico papel por eles desempenhado no drama da colonização.

Se assim é, por outro lado, existem importantes e imponentes avenidas destinadas ao perpétuo aplauso aos holandeses e aos franceses. A estes, vá lá, porque andaram fazendo escambo por aqui, levantaram incipiente fortificação e em derredor um pequeno povoado de casebres de palha que batizaram de São Luís. Sobre eles os portugueses, organizando melhor a ocupação do sítio, edificariam em pedra e taipa a parte bonita desta Capital.

Se assim é, por outro lado, existem importantes e imponentes avenidas destinadas ao perpétuo aplauso aos holandeses e aos franceses. Joaquim Itapary

É certo não haver deixado o francês perene testemunho material de sua estada no Maranhão. Ficaram os gauleses aqui por lapso insuficiente para construir algo definitivo. Ademais, quase sempre viviam o desassossego de lutas e perigos. No entanto, nada de odioso praticaram; teriam, até, tratado com fidalguia a quem os bateu e expulsou, segundo os cronistas. Atitude muito contrária à dos holandeses, tanto que até hoje ninguém parece capaz de justificar a razão da consagração a eles de uma das mais importantes vias de São Luís: a Avenida dos Holandeses. Exatamente aquela que orienta a expansão e o desenvolvimento da parte mais aprazível da cidade – a orla de praias.

Ao fim e ao cabo persiste a questão: por que essa homenagem? Há fato concreto capaz de justificar a denominação? Berredo, Lisboa, Meirelles e outros contam o que foi a breve, mas trágica e sanguinolenta, passagem dos holandeses por São Luís e pelo baixo curso do Rio Itapecuru. Leiamos João Lisboa:

“A fisionomia da invasão holandesa é toda militaria guerra, com todo o seu cortejo de horrores, agravados pelas paixões ruins dos conquistadores, eis o único quadro que temos a observar nesse período fatal de vinte e sete meses”.

Mais à frente arremata:

“Os holandeses não deixaram entre nós rastro ou memória alguma que denunciasse intenções benéficas...! Aqui a sua presença foi assinalada somente pelos estragos e ruínas que fizeram”.

Berredo inicia assim a narrativa dos crimes praticados pelos soldados de Jon Cornelizon Lichardt em sua marcha entre a praia do desembarque no Desterro e a fortaleza da Cidade:

“A este tempo já cometido aqueles hereges o sacrilégio bárbaro de despedaçar a imagem de Nossa Senhora do Desterro...”

Coincidem os relatos históricos de saques e pilhagens, invasão de banguês, incêndios de casas, violência contra mulheres e sacerdotes, profanação de templos e assassinatos. Enfim, um quadro de horror pintado com o sangue dos maranhenses, tragédia que enodoa a memoria dos primeiros tempos desta cidade. Até quando suportaremos o insulto histórico da homenagem imerecida?

Hoje, sendo pública a consciência dessa verdade histórica irretorquível, estando a Prefeitura a embelezar aquela alameda com centenas de caríssimas palmeiras reais australianas, por que a Câmara não faz cessar esse agravo à nossa dignidade coletiva, dando ao importante logradouro – por exemplo – o nome de Avenida dos Timbiras ou Avenida das Palmeiras? Afinal esta terra é deles... e delas!

(15/06/2003)

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