Crônica

A invasão das borboletas amarelas

Ivan Sarney

Atualizada em 11/10/2022 às 12h56

Elas chegaram sem qualquer aviso. Vieram ninguém soube de onde. Mas invadiram a cidade, pela madrugada, e se aquartelaram no manguezal da Lagoa, nos arbustos das ruas, das praças e dos quintais das casas centenárias. Os jardins, onde o verde vegetal fosse viçoso, também não escaparam dessa ocupação, inesperada, que aguardou a manhã despertar para mostrar sua beleza e plenitude.

De manhã, era cedo ainda, quando aquele espetáculo, inusitado, nos encheu os olhos, nos fomentou sonhos; coloriu e transformou nossa cidade, na mais bela e oportuna aquarela, marcando, para sempre, aquela manhã de agosto, do ano de dois mil e dez.

Era como se ela, a manhã, pontilhada de algumas centenas de borboletas amarelas, houvesse saído de um conto de fadas, para nos encantar. Ou como se a mesma manhã fosse, toda ela, o cenário de um episódio mágico, que ainda estivesse por acontecer. E nós, os que testemunhavam aquela magia, fossemos os espectadores ou figurantes, extasiados, de uma trama que iria se desenrolar. Mas que ia mostrando, a cada momento, um ato renovado de seu espetáculo sinfônico. Tudo muito mágico e quase irreal.

De automóvel, meu amor e eu percorremos muitos espaços da cidade, partindo do “Renascença”, para nos certificar se todo aquele cenário, esplêndido, estaria se reproduzindo em outros lugares, a despeito dos nossos olhos e dos olhos de tantos que pudéssemos encontrar. E encontramos.

De manhã, era cedo ainda, quando aquele espetáculo, inusitado, nos encheu os olhos, nos fomentou sonhosIvan Sarney

Por onde andávamos, ali estavam elas, se desprendendo das árvores, das folhas, como se brotassem de um esconderijo, insuspeito, para protagonizar aquele espetáculo maravilhoso, que nos envolvia e encantava. Ali estavam as pessoas, paradas, atentas aos movimentos dos pequenos seres, alados, que iam se evadindo das árvores e voavam em bandos, numa ciranda pueril e lúdica.

De onde vieram? De onde vinham as pequenas e frágeis borboletas amarelas? Por que escolheram nossa cidade, para construir aquele cenário tão encantador? Eram essas nossas indagações. Ninguém oferecia explicação. Todos pareciam extasiados, entregues àquele momento de contemplação, especialmente único, no curso das suas e das nossas vidas.

Que fenômeno era aquele, que tínhamos o privilégio de ver acontecer, ante nossos olhos absortos? Elas estariam migrando? Pareceu-nos que sim. Um Panapaná? Para onde iriam? Ninguém ousou explicar, publicamente, para onde. Mesmo depois.

Voavam em grandes enxames, como se executassem um ritual de exibição, não uma trajetória de passagem, para outro destino. Pareciam adejar em grandes círculos, guardando, entre si, distâncias e ritmos, ora pendendo em uma, ora em outra direção. Cumpriam um ritual que só a elas pertencia e pertence, talvez por instinto de sobrevivência. Para só morrer depois.

O enxame era, todo ele, de borboletas amarelas, unicamente amarelas, mostrando ser de uma única espécie aquele impulso de vida, aquele compromisso com sua própria existência, em inteiro respeito às leis da natureza, aos desígnios Divinos que rege toda a criação, e o universo onde ela existe.

Em minha emoção uma única certeza, imerso naquele quadro debuxado pela ordem natural: aqueles enxames de centenas e centenas de borboletas eram egressos de outras plagas. Talvez, de outro continente.

Mas, como teriam chegado aqui, voando milhares de quilômetros, seres tão frágeis e de vida tão breve? Que ventos os trouxeram, pela madrugada? Por que teria sido eleita, nossa cidade, como ponto de passagem para outro destino? Por estar próximo da Europa, talvez? Por ser uma ilha muito verde, acolhedora, com águas, tradições e encantos, por todos os lados? Ninguém soube dizer.

Mas elas estavam aqui! Sou testemunha, com meu amor, e centenas de pessoas, de que elas estiveram aqui. E passaram a manhã, logo ao alvorecer do dia, bailando pela cidade, sobre os telhados, sobre as águas, sobre as ruas e avenidas dessa cidade histórica que, naquele ano, completaria 398 anos de sua fundação.

Quando a tarde chegou, com sol ardente e, depois, esmaecido, foi rareando a presença dos bandos de nossas bem-vindas invasoras, que foram buscando aconchego distante de nossos olhos. E o céu da tarde foi ficando mais azul.

Por onde andamos, por onde outros andaram, já não nos foi e já não era possível o espetáculo das borboletas amarelas, nem suas presenças, rarefeitas, na tarde que a cidade oferecia. Elas pareciam já não estar aqui. Pareciam ter ido buscar seus destinos distante de nós e da cidade, saudosa, que tanto as acolhera.

Na manhã seguinte, com o dia despertando, já não foi possível ver e se emocionar com aquele espetáculo deslumbrante e único, que a cidade registrou em sua existência. Ficou a lembrança daquela manhã inesquecível, imortalizada, dentro de nós.

A cidade voltou a exibir seus cenários cotidianos, e a vida fez cumprir seus ritmos, independente de nós outros. As borboletas amarelas passaram como a Banda, metafórica e poética, dos versos da canção de Chico Buarque: “Mas para meu desencanto/ O que era doce acabou/ Tudo tomou seu lugar/ Depois que a banda passou/ E cada qual no seu canto/ E em cada canto uma dor/ Depois da banda passar/ Cantando coisas de amor...”. Amar a cidade é viver a plenitude de suas vidas e formas. É preciso amar a cidade.

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