Crônica

Um longínquo dia de São João

Jomar Moraes

Atualizada em 11/10/2022 às 12h57

Já vai longe, muito longe, o dia de São João que evocarei nesta quarta-feira também coincidentemente consagrada à louvação do santo por demais amoroso e que a todos nós nos inspira contrição e ternura, possivelmente por motivo de sua figura amorável e ao mesmo tempo humilde, caracterizada pela constante companhia de um carneirinho.

O dia de São João a que nesta quarta-feira me reporto faz hoje, precisamente, 99 anos, e foi acontecimento de tão marcante repercussão nesta cidade, que por anos seguidos dele se guardou a triste memória, hoje sensivelmente esmaecida, em decorrência do tempo cujo incessante transcorrer vai depositando sucessivas parcelas de esquecimento no conjunto cada vez mais apoucado da memória coletiva, daí resultando a amnésia generalizada que nos desinforma acerca do que fomos e nos desorienta sobre o que somos e seremos.

Por considerar de alguma valia a tentativa de recompor o cenário em que os fatos ocorreram, buscarei fazê-lo em traços muito gerais, relativamente à São Luís de 99 anos passados.

Em 1916 a cidade achava-se sob o efeito de um abatimento coletivo oriundo das mais diversas razões. Passara em grande parte a euforia provocada pelo sonho bom de transformar nossa capital num parque fabril importante, sonho esse que gerou o clima febril de indústrias surgindo constantemente na corrida que prometia alçar esta cidade às alturas de Manchester brasileira.

Na sequência da indústria têxtil, vieram fábricas e fabriquetas de fósforos, de chumbo, de pólvora, apesar de não existirem tantas espingardas para dar-lhes o adequado consumo de tiros.

No item, ainda, dos têxteis o problema revelou-se preocupante, relativamente ao lanifício instalado, para o qual não havia “in loco” nem matéria-prima nem tampouco mercado consumidor, já que por esse tempo aqui não se criavam carneiros, nem acontecia de nevar.

Quanto à fábrica de palitos, não se chegou a apurar se havia dentes em quantidade suficiente para serem palitados, porque aconteceu o seguinte: a fábrica adquirida com esse fim na Europa é que ficou desdentada, quando madeiras de consistência incompatível foram nela introduzidas para o beneficiamento que se revelou impossível, além de desastroso.

Assim, de fracasso em fracasso, o sonho da Manchester brasileira tornou-se pesadelo para os ex-senhores de escravos que, ressalvadas respeitáveis exceções, mais que afeitos ao papel de capitães de indústria, tinham por experiência maior tocar seus negócios no ócio e no cio praticado com belas e encantadoras negras.

De um modo geral, a cidade amargava acachapante decadência, sofrendo, inclusive, notável declínio demográfico em razão das levas e levas de emigrados para Belém, Rio de Janeiro e, principalmente, Manaus, onde se constituiu numerosa colônia maranhense com atuação nos mais diversos setores da vida manauara.

Passada, no plano físico, a geração áurea que somente no biênio 1863/64 perdeu João Francisco Lisboa, Odorico Mendes, Gonçalves Dias, Gomes de Sousa, Trajano Galvão e outros, e também transposta a reação luminosa que trouxe à circulação, durante um ano (1867/68), o “Semanário Maranhense”, à frente do qual estiveram Gentil Braga e Joaquim Serra, com a prestigiosa colaboração de figuras da importância de César Augusto Marques, Sotero dos Reis, Antônio Henriques Leal, Sousândrade, Sabas da Costa, os estreantes Celso Magalhães e Teófilo Dias, a par de alguns outros, caímos no marasmo.

O entusiasmo vivificador da visita de Coelho Neto a São Luís, em 1899, produziu grande estímulo no espírito dos jovens de então. E as numerosas agremiações literárias a partir de então surgidas deram vida nova a São Luís. Disso faz o correspondente registro Antônio Lobo em “Os novos atenienses”, onde consigna, sumariamente, a fundação da Academia, que ao ser fundada denominava-se apenas Academia Maranhense.

Em 1916, essa mesma Academia dava impressão de haver surgido natimorta, a 10 de agosto de 1908, pois até 29 de dezembro de 1916 não promovera sequer uma única seção pública.

Foi, portanto, nesse ambiente de pasmaceira, desânimo e sensação de derrota que São Luís viveu seu dia de São João de 1916.

Por considerar de alguma valia a tentativa de recompor o cenário em que os fatos ocorreram, buscarei fazê-lo em traços muito gerais, relativamente à São Luís de 99 anos passadosJomar Moraes

Nessa data a cidade amanheceu com os olhos e as perplexidades da véspera, que muitos passaram em claro, à espera de um milagre que parecia cada vez mais improvável. É que, poucos dias antes, o mestre de gerações Antônio Francisco Leal Lobo, ainda no vigor dos seus 46 anos idade, após uma campanha jornalística contra o governador da época, Herculano Parga, privado solertemente de sua tribuna, o jornal “A Tarde”, deu-se por vencido.

É que “A Tarde”, órgão do qual Lobo era redator-chefe, mas não proprietário, fora adquirida por Herculano Parga a seu proprietário, J. Pires, com o objetivo de silenciar Antônio Lobo, que assinava uma combativa coluna intitulada A Política Maranhense. Surpreendido pela traição, Antônio Lobo, propenso ao suicídio, que já houvera tentado por duas vezes, não viu outra solução além de recorrer ao chamado gesto extremo. Confinado pela esposa, D. Lucrécia, num quarto de sua residência, utilizou-se da corrente de armar redes que ali havia e deu início ao prolongado penar que durou mais de 24 horas para consumar-se.

A hipocrisia da época levou alguns jornais a dizerem que o professor Antônio Lobo faleceu “serenamente”. Fato que também induziu um marçano travestido de escritor a pôr em dúvida a afirmação de suicídio, que fiz em meu livro sobre o assunto. Mas a verdade é que o professor cometeu suicídio. E com esse fato lamentável, enlutou São Luís no dia 24 de junho de 1916.

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