Crônica

A chuva e o silêncio da madrugada

Ivan Sarney

Atualizada em 11/10/2022 às 12h58

Desde menino, aprendi a amar o barulho das chuvas. Os primeiros sons das chuvas, os que ficaram gravados em mim, não me chegaram puros. Vieram misturados com os sons dos trovões, das trovoadas que costumavam acompanhá-las, anunciar as águas torrenciais que desabavam sobre a cidade, no período do inverno. Éramos crianças e a cidade, para nós, tinha os limites da Rua de Santaninha, onde morávamos, e da Praça Deodoro, onde um mundo lúdico nos espreitava e conduzia, para o encontro dos amigos e de outras descobertas.

Aquelas chuvas permaneciam por dias e dias seguidos e semeavam nostalgia dentro e em torno de nós. Algumas vezes, o sol não dava o ar da graça uma semana inteira, e o cinzento das nuvens pesadas fazia o cenário da rua, das enxurradas que corriam pelas sarjetas, pelas tardes úmidas, muito além das seis horas da tarde, quando as rádios tocavam a Ave Maria e já tínhamos que estar banhados, vestidos com roupas limpas, esperando o jantar.

Outras vezes, passávamos dois, três dias sem sair à rua, sem ir ao colégio, cingidos pelo cinzento das horas que escorriam com as águas e que nos comprimiam em casa, entre crenças, simpatias, rezas e tudo o mais que refletia nossa reverência a Deus e seus desígnios: espelhos cobertos com lençóis; café quente para cima dos telhados, imprecando Santa Clara. Era um mundo de crendices que minha mãe, que meu avô, que meu pai traziam e punham em nossa casa, dentro de nós!

Éramos crianças, sim. Os sons das trovoadas vinham, amedrontantes, e nos impeliam para debaixo da mesa, para dentro de nós mesmos, com temor e reverência, e nos aproximavam de Deus. As faces de Deus, estampadas nos santinhos que os padres nos entregavam, tinham o mesmo doce semblante de agora, que inspirava o amor e o temor, ao mesmo tempo. Era a ele que pedíamos, buscando alívio para nossos temores temporais. Era a ele que temíamos, que não podíamos desagradar cometendo pecados. Mas o som das chuvas, das águas contra o telhado e as folhagens, contra as águas das sarjetas, esse som era bem-vindo, e vinha com essa aura de ansiada melodia.

Portanto, o som das águas das sarjetas, correndo velozes para as bocas de lobo, para encontrar o mar, está ligado também aos encantos da chuva, com suas tardes de estio, e nossas mãos de crianças soltando barquinhos de papel, que iam encontrar seu destino, bem longe de nós, de nossos sonhos e promessas, infantis. Está ligado ao turbilhão, ao murmúrio que as aquelas águas apressadas faziam, como se cantassem correndo, alegres em busca de seus destinos.

O som das chuvas no telhado, porém, tinha o dom especial de nos adormecer, de nos embalar as histórias de carochinhas, de nos aliviar o medo das madrugadas. Era como se fosse uma proteção, um vigia que nos guardasse, juntando-se a Santo Antônio que imperava, majestoso, no pequeno oratório de nossa casa.

Só quem já dormiu, embalado pelo som de chuva forte, sobre as telhas de barro, numa casa sem forro, sabe bem o que estou dizendo. E como estou dizendo, posso acrescentar ao som das chuvas o prazer de estar deitado, metido numa rede de algodão, feita em São Bento, com varandas largas, para a magia de dormir. E nessa magia, estar metido num pijama meio velho, meio surrado, nem muito sujo, nem muito limpo também. Um pijama já usado, com cheiro de roupa dormida, para mais se parecer com nós mesmos.

Portanto, o som das águas das sarjetas, correndo velozes para as bocas de lobo, para encontrar o mar, está ligado também aos encantos da chuva, com suas tardes de estio, e nossas mãos de crianças soltando barquinhos de papelIvan Sarney

Só mais tarde, já no início da adolescência, vim conhecer um outro som, relacionado com as águas das chuvas, que viria a me encantar inteiramente a alma, me embalando como melodia perfeita, quase como um sonho. Foi em nossa fazenda Santo Antônio, na Ponta da Ilha. Era o som da chuva forte, sobre a palha da casa do vaqueiro, onde tantas vezes dormi, com o consentimento zeloso de meu pai e minha mãe. Esse som era algo essencialmente puro, em sua forma, em sua sonoridade, na maneira com que se projetava sobre o telhado, sobre nossas cabeças e nos embalava o sono.

Era uma outra forma de melodia. Eu ficava, ali, inteiramente entregue à casualidade do momento, querendo usufruir tudo, gozar de tudo, inclusive da luz da lamparina, que ardia acesa na noite, realçando cada objeto, cada coisa que tinha nome e ganhava vida, naquela casa. Ela se impunha sobre a escuridão, sobre as muriçocas e com ela adormecíamos, cansados das travessuras do dia.

O som das chuvas sobre a casa do vaqueiro foi, com certeza, o som mais puro que eu gravei, nos quadros de minha infância. Sim, porque na casa de seu Ludgero, desde a porta de palha trançada, tudo era simples, funcional e tinha uma existência quase humana, porque era feito pelos que ali habitavam: o mocho, o fogão e o pote de barro, as bilhas d'água, as moringas, a mesa, o jirau, a casa inteira, com sua cobertura e suas paredes vegetais. E o som da chuva, nas palhas, tinha essa mesma aura de eternidade.

O tempo consolidou em mim uma história das chuvas e seus sons, suas melodias que, para uns, era tormento e dor. Por isso, agora, posso sentir que a chuva que cai sobre a cidade, que encharca a terra e enche de vigor o verde vegetal das matas, das plantas, é como se caísse em mim também, me enchendo de verde, de lembranças, de águas que rolam, limpam, fertilizam e fazem brotar frutos mais doces e maduros. Amar a cidade é viver sua poesia e suas lembranças. É preciso amar a cidade.

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