Crônica

O magnético percurso da gota d’água

Ivan Sarney

Atualizada em 11/10/2022 às 12h59

Chove, intensamente, na cidade inteira. Uma chuva opaca vai benzendo a cidade, vai descendo as ladeiras, nos rumos do rio Anil e do Bacanga.

Posso dizer, com o sentimento de quem vive as mutações da natureza, que essa é a mais densa chuva da estação. A mais densa chuva de um verão que acontece molhado, como todos os verões que já se sucederam em nossas ruas, com o testemunho de meus olhos e minhas perplexidades.

A imagem da chuva, desenhada no vidro da janela, entre gotas que escorregam e vão, cumprindo um percurso lento e imprevisível, é um quadro de lembranças que se entrelaçam ao sabor da memória e das horas que vão passando lentas, no aconchego do lar e da tarde.

Uma pequena e trêmula gota d’água, chuva pura e cristalina, é teimosa e audaz. Fica, a princípio, parada, quase imóvel na parte de cima do vidro. E vista de onde estou, da janela do escritório, paira sobre todos os telhados das casas do Renascença, e mesmo sobre o concreto frio dos prédios que posso vislumbrar, pela moldura da janela e do vidro.

A princípio imóvel, ela abriga outros pingos que chegam e crescem até não poder mais se prender à sua inércia e cai, descendo aos poucos, como se teimasse em não descer, como se relutasse em cumprir seu destino de gota d’água, no vidro da janela.

Ela vem devagar, rolando lenta e sinuosa, alongando o percurso, buscando sua própria trajetória, entre outras gotas que se grudam e se formam, com igual promiscuidade, na dura e lisa superfície do vidro. Ela desce e estanca, repartindo-se em três.

Vou seguindo com os olhos seus destinos líquidos, na densa e farta chuva que banha o Renascença e a cidade. Cada uma, agora, tem sua própria força, sua vitalidade temporária, sua unicidade, sua identidade pessoal de gota d’água. Cada uma, agora, é única, e vai buscando seus próprios rumos, descendo lentas umas; outras, mais velozes, na verticalidade fria do vidro.

Fico preso às suas trajetórias, procurando não perdê-las de vista, entre tantos pingos que chegam e se grudam no vidro, e que vão escrevendo suas presenças, na tarde e no tempo curto de suas passagens, ante meus olhos de encanto.

A primeira gota, a que primeiro vi parada, relutante; a que se repartiu em três, ainda teima em prender-se ao vidro, de forma inamovível. Está parada e resiste aos apelos da gravidade para que desça, para que se desfaça de sua identidade de gota e venha a engrossar as águas que vão descendo pelas paredes e vão juntar-se às outras águas nas sarjetas, engrossando as enxurradas e tudo o que elas carregam consigo.

As outras duas já desceram. Fizeram uma primeira tentativa de resistência e nem buscaram os caminhos mais longos, mais lânguidos. Vieram muito rápidas, engrossadas por novos pingos, e desceram, quase verticais, deixando um rastro de suas passagens no vidro embaçado. Entregaram-se, de vez, aos seus destinos inelutáveis, às suas efêmeras presenças, e não quiseram permanecer por mais tempo sendo alvo de minhas reflexões e de meu testemunho.

Desceram até a base da janela de alumínio, percorrendo a extensão do vidro, em poucos segundos e se foram, talvez no rumo do jardim, onde resplende o verde floral da natureza.

A outra, a primitiva gota, ainda reluta. Ela acolhe novos pingos e, novamente, cresce e vai descendo sinuosa, quase sem descer. Ora segue para um lado, sempre lenta, sempre vaga, como quem parte e deixa parte de si no caminho. Ora segue para o outro lado, com a mesma parcimônia, a mesma lassidão, a mesma relutância.

E assim vai até repartir-se novamente em três, como se seu ventre de gota só pudesse reproduzir-se em três. Como se os pingos que a engravidam só lhe fertilizassem assim. Como se esse fosse o volume e o tempo máximo de sua gestação cristalina.

A imagem da chuva, desenhada no vidro da janela, entre gotas que escorregam e vão, cumprindo um percurso lento e imprevisível, é um quadro de lembranças que se entrelaçam ao sabor da memória e das horas que vão passando lentas, no aconchego do lar e da tardeIvan Sarney
Só depois de muita relutância, de muita luta, ela se entrega e vai descendo mais ligeira, mais resoluta, mais definitivamente resolvida. Desce e descreve uma curva alongada e veloz e, quase sem paradas, agora, se entrega ao seu próprio destino.

Ela, a pequena e fértil gota d’água, que me fascinou por sua luta e resistência, já não tem identidade de forma, já não é gota, já é lembrança e eu posso dizer que já é passado também.

Ainda chove e chove muito, dentro da tarde. Penso na canção religiosa que diz: “Para mim, a chuva no telhado/ É cantiga de ninar/ Mas o pobre, meu irmão/ Para ele a chuva fria/ Vai entrando em seu barraco/ E faz lama pelo chão...”

Penso na pequena gota d’água e em sua trajetória, enquanto os pingos de chuva vão enchendo o vidro de tantas outras gotículas que escorregam ligeiras, cumprindo um destino igual de escorrer pelo vidro e se perderem depois, já amorfas, na moldura da janela.

A chuva que banha a cidade, agora, vai levando as impurezas do ano, as impurezas da alma, como levasse também um pouco de nós, de tudo aquilo que vivemos, que nos alimentou no ano que ora está findando, definitivamente inscrito na cronologia da existência do homem, e na cronologia histórica da própria Terra.

Como é bom poder estar neste cenário, como uma parte dessa história, como força viva e dinâmica que o influencie e o torne mais atraente, mais esperançoso, mais sedutor.

As chuvas, então, que levem as mazelas; que produzam os pingos, as gotas, as enxurradas e lavem, e levem todas as impurezas de nossos sentimentos, de nossas esperanças e nos façam mais verdes, mais azuis, mais luminosos, com uma perspectiva humanista, positiva, que nos irmane e nos impulsione para uma vida mais solidária, mais fraterna e construtiva. Chove, e ainda é abril. Amar a cidade é sentir seus cenários. É preciso amar a cidade.

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