Crônica

1º de Maio

“... em seu significado primeiro e radical, o trabalho é, ao pé da letra, poesia, assim como a poesia é trabalho, desde as raízes mais coerentes da palavra”

Sebastião Moreira Duarte

Atualizada em 11/10/2022 às 12h59

Quando eu ouvi falar do 1º de Maio pela primeira vez, reagi com a pergunta inocente que é de toda gente: “Mas se é o Dia do Trabalho, por que o feriado?”

Eu era um garoto peralta, e andava longe de minha compreensão a história dos protomártires do trabalhismo, na Chicago de 1886.

Mais tarde, dei de cara com as palavras de um barbudo caturra, convocando os proletários do mundo todo a se unirem contra a luta de classes. Confesso que não tive nenhuma dificuldade em ver que aquilo tinha feição de conversa para pegar gente besta. Palavras bonitas demais, promessas exageradas.

Depois, deparei o conhecido texto em que o companheiro de Marx fala da humanização do macaco por meio do trabalho. Desconfiei que a bisonha afirmação extrapolava as insinuações de Charles Darwin, sobretudo quando se leem os desdobramentos daquele materialismo ronceiro, lá onde Engels afirma, sem pejo, que o homem aprendeu a falar quando o macaco aprendeu a trabalhar. Os linguistas têm passado mais de um século gargalhando sobre tão excêntrica teoria.

Mas é bonito saber que foi pelo trabalho que o homem se fez ser humano, capaz de produzir e comunicar o sentido assombroso do salto que dera, da hominização para a humanização.

Foi trabalhando que Deus fez o mundo. (Bem, se deixou o serviço incompleto e na semana seguinte não voltou a marcar ponto no trabalho, foi só para provar que é brasileiro: tanto que deixou escondida na Amazônia a matéria-prima para fabricar os mundos todos que ficaram por fazer). E esse negócio de que impôs ao homem o castigo de ganhar o pão com o suor do próprio rosto deve ser revisto, com urgência. O psicógrafo bíblico não estava habilitado para a sublime tarefa, ou não se concentrou o bastante para reduzir a termo a mensagem recebida. É desse equívoco que provém o pecado grosseiro que descompreende o valor do trabalho, a partir do qual o homem passou a alimentar-se de verdades enlouquecidas. Pois o trabalho não é o peso da punição, mas o preço da promoção da pessoa humana à liberdade.

Que vida haveria mais enfadonha que a do Paraíso Terrestre, se Adão e Eva, cansados de não fazerem nada, gastassem o tempo bocejando, como um arquétipo de Macunaíma? (As muito feministas me perdoem se ponho o nome do homem em primeiro lugar: eu seria incapaz de escrever Eva e Adão).

A vida dos primeiros pais no famigerado Jardim era de intenso trabalho, porque era uma vida de só divertimento, feitos, como eles foram, à imagem e semelhança do Criador. Ou terá havido razão maior para Deus ter criado o mundo, senão pelo gosto de divertir-se, durante o dia, com o futebol dos astros no campo azul do firmamento, e à noite, ao luar, jogando voleibol nas areias brancas de nossas praias sem fim? A eternidade deve ser cansativa, e o Onipotente deu-se ao luxo de tornar-se criança, atirando pelos ares todo o peso de ser divino.

Estou repetindo, em outras palavras, o que todos sabemos: em seu significado primeiro e radical, o trabalho é, ao pé da letra, poesia, assim como a poesia é trabalho, desde as raízes mais coerentes da palavra. Daí, o gosto pela poesia, que habita as entranhas de todo sujeito humano, mesmo o mais distante e desesperançado dos valores do espírito. E, por igual razão, o hálito de infância inaugural de que se impregna todo labor poético.

Pelo trabalho com a palavra, Deus fez o novelo do mundo, e nos entregou a ponta da meada, a fim de continuarmos a sua obra, refazendo-a como ele a fez: através da palavra. Palavra por dizer, invenção do não dito, do inaudito, criação da poesia.

O 1º de Maio vale como feriado, se servir como parada de reflexão sobre a excelsa dignidade do trabalho humano.

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