(Divulgação)

COLUNA

José Lorêdo Filho
Editor da Livraria Resistência Cultural Editora e chanceler do Círculo Monárquico de São Luís
José Lorêdo Filho

Carl Schmitt

Em linhas muito gerais, eis aí a tese do “decisionismo” político e jurídico de Carl Schmitt — que tanta influência ainda exerce em alguns luminares, supostos ou reais, do direito brasileiro.

José Lorêdo Filho

Nenhum outro encarna de modo tão completo como Carl Schmitt (1888 – 1985) a figura do intelectual amaldiçoado pela impostura das ideologias. Também por sua culpa, mas não tanto, que me perdoem as patrulhas ideológicas, pois o seu tempo ficou marcado pela tragédia dos acontecimentos, por esse “imponderável” que uns dizem ser a ação da Providência no mundo, outros a prova irrefutável da existência do diabo.

Muitos foram os escritores e intelectuais que, pela sua colaboração — por vezes muito tímida, quando não meramente circunstancial — com os os regimes fascistas do século XX, foram estigmatizados, dir-se-ia por toda a eternidade, pela chamada “opinião pública”, em geral pela “opinião publicada”— relembrando aqui o velho Churchill, furiosamente antinazista, como devem ser todos nós, e que chegou a intentar uma aliança com Mussolini, pois sabia que o autoritarismo fascista, com todos os seus males e inconveniências, não se comparava às tiranias hitlerista e comunista, ambas intoleráveis.

Mas houve tempo em que se não poderia conceber o paroxismo a que chegaria o nacional-socialismo, ainda tido e havido por muitos como um obstáculo ao totalitarismo comunista, sobretudo no contexto alemão daquele período, vivenciado dramaticamente por Carl Schmitt. O já renomado jurista e filósofo, em 1932, via a Alemanha acossada pela insolvência da democracia liberal e sendo disputada, palmo a palmo, por dois movimentos de massas, que se digladiavam nas ruas — justamente o nacional-socialista e o comunista. Schmitt optou por apoiar circunstancialmente o partido que ainda não havia dado provas de ferocidade e destruição. Foi acossado pela indigência dos tempos. E, de mais a mais, católico que era, pode-se apontar em sua defesa o ter a Igreja condenado formalmente o nazismo apenas em 1937, quando Pio XI publicou a encíclica Mit brennender Sorge.

Abstraído esse problema que pertence às contingências, é impressionante a vitalidade desse grande jusfilófoso. Suas principais teses ainda nos dizem muito. Seus livros, sucessivamente reeditados, estão à disposição de todos, em qualquer parte do mundo. Presença avassaladora. Mesmo um país periférico como o Brasil parece estar atento à sua importância, com diversas edições publicadas e muito bem distribuídas.

O ano passado marcou o centenário da editio princeps de um pequeno livro do mestre alemão — Politische Theologie: vier Kapitel zur Lehre von der Souveränitát (Berlin: Duncker & Humblot, 1922). Livro estupendo em tantos sentidos. E de uma influência indizível. Um dos mais eminentes acadêmicos europeus — o professor Alexandre Franco de Sá, da Universidade de Coimbra — preparou modelar tradução comentada da Teologia Política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania, a sair simultaneamente no Brasil e em Portugal. Um marco editorial. Talvez uma exposição sumária de seus postulados explique, ao menos em parte, o que se vem passando no Brasil, em que o Judiciário parece se consolidar como instância “moderadora” das instituições políticas.

“Soberano é quem decide sobre o estado de exceção.”— assim inicia Schmitt o seu pequeno livro de 1922, logo enunciando a premissa fundamental de sua teoria do “decisionismo” político e jurídico. A União Soviética, com a sua violência inaudita, representava então a grande ameaça ao chamado “mundo livre”. Em face disso, o Ocidente ensaiava algumas reações de natureza autoritária para conter o perigo comunista, mais particularmente com a ascenção de Mussolini ao poder na Itália, naquele mesmo ano, com o apoio tácito da Igreja e de amplos setores da intelligenzia, do empresariado e das elites rurais. O “decisionismo” político foi a teoria que, de algum modo, conformou a reação autoritária europeia à tirania soviética.

Constatada a absoluta politização da vida social, tomado o Estado por grupos ideológicos os mais diversos, em decorrência da falência do sistema liberal e partidário, teorizou Carl Schmitt a necessidade de uma autoridade capaz de evitar o desmembramento estatal e a consequente destruição da comunidade política. Contrariamente a uma concepção normativista do direito — com o que se fez irredutível adversário intelectual de Hans Kelsen —, pareceu-lhe que somente uma “decisão” soberana apartada das normas jurídicas poderia ser o garante das instituições e da sociedade civil, de maneira a se oferecer um obstáculo concreto à sanha de poder dos grupos ideológicos e das facções políticas, especialmente a dirigida por Moscou.

O “decisionismo” propugnado por Schmitt pretendeu estabelecer uma autoridade política, dir-se-ia “moderadora”, com o propósito manifesto de se impor politicamente, situando-se para além e acima do ordenamento jurídico, pois somente assim poderia ser realmente “soberana” e “moderadora” — daí a correlação com a excepcionalidade institucional, ou antes com o “estado de exceção”, cuja regulação compete ao “soberano”. Em linhas muito gerais, eis aí a tese do “decisionismo” político e jurídico de Carl Schmitt — que tanta influência ainda exerce em alguns luminares, supostos ou reais, do direito brasileiro.

O professor Alexandre Franco de Sá se fez autoridade absoluta no estudo do pensamento de Carl Schmitt, do qual já traduziu livros importantíssimos como Catolicismo romano e forma política (Lisboa: Hugin, 1998), Terra e mar — breve reflexão sobre a história universal (Lisboa: Esfera do Caos, 2008) e O conceito do político (Lisboa: Edições 70, 2018), e sobre o qual dedicou as coletâneas de ensaios Metamorfose do poder — prolegômenos schmittianos a toda a sociedade futura (Coimbra: Ariadne, 2004; 2ª ed., Rio de Janeiro: Via Verita, 2012) e Poder, direito e ordem — ensaios sobre Carl Schmitt (Rio de Janeiro: Via Verita, 2012). A sua tese de doutoramento foi publicada no portentoso volume O poder pelo poder — ficção e ordem no combate de Carl Schmitt em torno do poder (Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009). Mais recentemente, partindo de premissas inegavelmente schmittianas, publicou um dos livros de maior sensação na Europa, sobre o tomentoso problema do populismo — Ideias sem centro — esquerda e direita no populismo contemporâneo (Lisboa: D. Quixote, prefácio de Jaime Nogueira Pinto, 2021).

E, entre nós, um talento nordestino parece manter a excelência do debate intelectual em torno do grande jusfilósofo alemão — o professor piauiense Alexandre Bacelar Marques publicou ano passado o imperdível A religião de Carl Schmitt — verdade cristã, autoridade letrada e o poder do Estado no século XX (Campinas: Editora E. D. A., 2022), com o que procurou rastrear um possível fundamento cristão na obra de Schmitt. Aliás, o Piauí parece despontar como força robusta no trabalho, sempre ingrato, de restauração intelectual e espiritual do Brasil — além do professor Marques, temos os juristas Milton Gustavo Vasconcelos e Saul Emanuel Ferreira Alves, todos de sólida formação humanística, amparados pela melhor doutrina, com obra relevante por publicar. Os próximos anos poderão ser decisivos — com ou sem “soberania” judiciária.

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