Checagem

É falso que Lula tenha roubado 350 mil toneladas de ouro de Serra Pelada e dado dinheiro para Venezuela

Quantidade citada é maior do que as estimativas de todo o ouro já minerado no mundo.

Projeto Comprova

Conteúdo foi inventado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Conteúdo foi inventado de modo deliberado para espalhar uma mentira. (Reprodução)

Falso

Homem em vídeo diz que 350 mil toneladas de ouro de Serra Pelada foram parar nas mãos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas a quantidade citada é maior do que as estimativas de todo o ouro já minerado no mundo, somado ao que ainda há para minerar. Além disso, não houve extração do metal precioso em Serra Pelada durante todo o governo do petista.

Conteúdo investigado: Vídeo do TikTok mostra homem falando que Lula “comeu” ouro e diamantes de Serra Pelada junto de uma firma do Canadá, que esta empresa e a Vale tiraram 350 mil toneladas de ouro do local e que este minério foi parar nas mãos do ex-presidente, que passou R$ 200 milhões para a Venezuela no primeiro mandato. Lula ainda teria sido pego em um roubo de R$ 11 bilhões. O mesmo conteúdo é utilizado em um vídeo no YouTube, onde foi acrescentada uma narração afirmando que a fala do homem está repleta de informações verdadeiras publicadas na imprensa.

Onde foi publicado: TikTok e YouTube.

Conclusão do Comprova: É falso um vídeo publicado no TikTok em que um homem acusa o ex-presidente Lula de ter roubado, junto com a Vale e a mineradora canadense Colossus, 350 mil toneladas de ouro e diamantes retirados de Serra Pelada, na Província Mineral dos Carajás, em Curionópolis, no Pará. Ainda de acordo com o homem que aparece no vídeo, o minério “foi para a mão de Lula”, que mandou “R$ 200 milhões para a Venezuela”. Entretanto, não houve no local retirada de ouro ou mesmo diamantes durante o governo Lula, nem depois dele, de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM). Além disso, todo ouro retirado de Serra Pelada desde que o metal precioso foi descoberto no garimpo, em 1979, não chega a 1% do que o autor do vídeo alega ter sido roubado pelo petista.

De acordo com dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) publicados em 2020 pela BBC, o estoque subterrâneo de ouro ainda existente no mundo é estimado em 50 mil toneladas, enquanto outras 190 mil toneladas já teriam sido extraídas de todo o planeta. Para que a alegação do vídeo fosse verdadeira, o ex-presidente Lula precisaria ter roubado em Serra Pelada todo o ouro já extraído em minas do mundo inteiro, mais as 50 mil toneladas que ainda restam, somadas a outras 110 mil toneladas do metal precioso.

O auge da extração de ouro em Serra Pelada ocorreu na década de 1980. Em 1979, um trabalhador de uma fazenda local descobriu uma pepita de ouro e a informação se espalhou rapidamente. Ao longo de toda a década de 1980, segundo dados divulgados em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), foram extraídas 42 toneladas de ouro de Serra Pelada. A retirada caiu consideravelmente em 1990, quando apenas 250 quilos foram garimpados. Em 1991, um decreto do então presidente Fernando Collor de Mello determinou o fechamento da mina de Serra Pelada, considerado o maior garimpo a céu aberto do mundo, a partir de fevereiro de 1992. O decreto foi revogado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em agosto de 2020.

Ao longo do vídeo no TikTok, o homem não explica de onde tirou os números mencionados, nem apresenta provas das acusações. Um canal no YouTube usou o mesmo material e tentou “provar” as acusações com prints de reportagens publicadas na imprensa, mas nenhuma delas de fato prova que Lula, a Vale ou a empresa canadense tenham desaparecido com 350 mil toneladas de ouro e diamantes. Sobre os R$ 200 milhões enviados para a Venezuela, o canal usa informações sobre débitos do governo venezuelano ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sem relação com o ouro de Serra Pelada.

Ele também usa informações enganosas sobre um “roubo” de R$ 11 bilhões e mente ao afirmar que pesquisas eleitorais não falam a verdade, uma vez que enquetes on-line apontam a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

O Comprova classificou este conteúdo como falso porque ele foi inventado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos de maior alcance nas redes sociais. O post feito no TikTok em 14 de maio registrou, até o dia 30 do mesmo mês, 19,7 mil curtidas, 1.733 comentários e 16,3 mil compartilhamentos. No YouTube, onde o vídeo foi postado no dia 23, havia 15,15 mil visualizações, 2,9 mil curtidas e 115 comentários até a mesma data.

O que diz o autor da publicação: No TikTok não é possível contato com os usuários, mas o Comprova localizou o perfil do autor no Instagram e enviou mensagem direta, que não foi respondida. No YouTube, o responsável pela postagem não se identifica. Na aba “sobre”, há links para duas contas, uma no Twitter que está suspensa, e outra de uma usuária do Facebook. O Comprova enviou mensagens para ela, questionando se possui ligação com a página no YouTube, mas também não houve resposta.

Como verificamos: Para fazer esta checagem, o Comprova pesquisou sobre o garimpo de ouro em Serra Pelada, a quantidade do metal já retirado de lá e a situação atual do garimpo no local. Também foram feitas buscas envolvendo os valores citados no vídeo, o nome do ex-presidente Lula, da Vale, da cooperativa de garimpeiros de Serra Pelada, a Coomigasp, e de uma “mineradora canadense”, o que levou à Colossus Minerals, empresa que chegou ao Sul do Pará em 2007, pouco depois de ter sido criada, em 2006.

As pesquisas por publicações na imprensa levaram a pelo menos duas grandes reportagens – um especial de 2017 da Folha de S.Paulo com fotografias de Sebastião Salgado e dados sobre a mineração no local, e uma denúncia de 2010 do Estadão que mostrou um esquema liderado pelo ex-senador e ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão para reabrir a mina com a participação da canadense Colossus Minerals. Lobão, que foi ministro de Lula, negou ter feito um esquema. A reportagem, publicada ao longo de algumas edições de julho de 2010, cita o ex-presidente Lula apenas duas vezes: uma para dizer que ele desmarcou duas visitas ao local por entender que o projeto era desfavorável aos garimpeiros e deixava praticamente todo o ouro nas mãos da empresa canadense, e outra para afirmar que ele disse ser questão de honra para seu governo autorizar a reabertura da mina.

Também foram consultados órgãos oficiais, como a Agência Nacional de Mineração (ANM), o Serviço Geológico Brasileiro, ligado à Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (SGB/CPRM), e o Ministério das Relações Exteriores. Foram contatadas a Vale, a Colossus Minerals, a Coomigasp, a Sedeme e o Ibram. Por fim, foram acessados relatórios técnicos oficiais da Colossus enviados à Bolsa de Valores de Toronto em 2007 e 2010, além de artigos científicos que tratam da exploração de ouro em Serra Pelada e imagens de satélite da mina entre 1985 e 2021. A reportagem procurou, ainda, o Serviço Geológico dos Estados Unidos e o Conselho Mundial do Ouro.

Os autores dos vídeos postados no TikTok e no YouTube foram procurados, mas não responderam até a publicação desta checagem.

Mineração em Serra Pelada

A descoberta do ouro em Serra Pelada é atribuída a um peão conhecido apenas como Aristeu, segundo explica um artigo intitulado ‘Ouro, empresas e garimpeiros na Amazônia: o caso emblemático de Serra Pelada’, publicado em 2010. Enquanto trabalhava, Aristeu encontrou uma pepita de ouro na Fazenda Três Barras, de propriedade de Genésio Ferreira da Silva. O dono da propriedade teria tentado deixar o caso em segredo, mas a notícia logo se espalhou e os garimpeiros foram chegando às centenas, depois aos milhares. Em março de 1980, 5 mil homens já trabalhavam na chamada Grota Rica.

O governo militar, então, mandou o Major Sebastião de Moura Curió, que havia dizimado alguns anos antes a Guerrilha do Araguaia, para “cuidar” do garimpo no local. O Major Curió loteou a mina e a distribuiu entre os garimpeiros. Durante uma década, estima-se que foram extraídos artesanalmente de Serra Pelada algo entre 37 e 50 toneladas de ouro, mas o volume pode ser maior por conta dos desvios. O ano com maior volume de extração foi 1983, quando saíram de lá mais de 13 toneladas de ouro, oficialmente, como mostra o artigo já citado e também esta reportagem do Estadão. Na época, havia 67 mil garimpeiros no local.

A partir de 1990, a retirada foi caindo consideravelmente e, em setembro de 1991, o então presidente Fernando Collor de Mello publicou um decreto determinando o dia 11 de fevereiro de 1992 como o prazo máximo para o fim dos trabalhos de garimpagem em Serra Pelada. O sonho de reabrir a mina continuou por muitos anos, até que, em 2007, o senador Edison Lobão começou as articulações para a reabertura.

O Estadão denunciou em 2010 como Lobão negociou a cessão das áreas da Vale para a cooperativa de garimpeiros e articulou também a formação de uma empresa entre a Coomigasp e a suposta gigante da mineração no Canadá Colossus Minerals. A entrada de uma mineradora era necessária à reabertura da mina porque o local onde antes era feito o garimpo havia se transformado em uma cratera de 200 metros de profundidade e estava cheia de água. Com a mina transformada em lagoa, era impossível aos garimpeiros minerarem de maneira artesanal.

Os trabalhos de pesquisa foram autorizados e a mineradora chegou a anunciar que havia encontrado depósitos de ouro em Serra Pelada, mas os documentos enviados à Bolsa de Valores de Toronto, também em 2010, mostram que a empresa não chegou a extrair nada – pelo contrário, foi informada a necessidade de mais dinheiro para, de fato, conseguir minerar em Serra Pelada.

O papel da Vale e da canadense Colossus

Conforme informou a Agência Nacional de Mineração (ANM), a mineradora Vale não tem mais qualquer atuação em Serra Pelada. No passado, a mineradora chegou a realizar pesquisas na área e obteve concessão de lavra, mas esta foi repassada à Coomigasp e à empresa Colossus, que posteriormente desistiu do projeto.

A Vale, também procurada pelo Comprova, confirmou não ter qualquer participação na Colossus e nunca ter chegado a exercer qualquer atividade de lavra minerária em Serra Pelada, seja para ouro ou diamante (identificado em quantidades irrelevantes). A mineradora afirma ter cedido a área de jazida à Coomigasp em março de 2007 e acrescenta manter no município de Curionópolis apenas a unidade Serra Leste, de exploração exclusiva de minério de ferro.

Em 2013, a Colossus, que desde então vinha realizando pesquisas no local e foi contratada pelos garimpeiros para explorar o ouro, realizou demissões em massa e comunicou a paralisação das atividades alegando ter encontrado desafios técnicos para o controle da quantidade de água no solo onde o projeto estava sendo desenvolvido, o que teria provocado um desequilíbrio orçamentário. As atividades nunca mais foram retomadas e o projeto acabou abandonado pela mineradora.

Atualmente, há uma briga judicial entre o Governo do Pará e a Serra Pelada Companhia de Desenvolvimento Mineral – formada pela Colossus e pela Coomigasp – em decorrência do abandono da área. Em março deste ano, a Vara Única de Curionópolis chegou a deferir parte de medida liminar na qual o estado afirma ter sido construída uma estrutura de contenção para receber rejeito de mineração, entretanto o projeto nunca entrou em operação.

A parte autora da ação sustenta que em vistoria técnica foi constatado que a barragem está “apresentando trincas e erosão significativas, recalques e galgamentos, não possuindo nenhuma instrumentação para monitoramento e drenagem superficial” e que a existência de uma comunidade próxima pode ser afetada pelo rompimento da estrutura.

A justiça determinou que a empresa implante um sistema de monitoramento da barragem, apresente ao órgão federal minerário e ao órgão ambiental licenciador, para aprovação, Plano de Contingência atualizado da Mina, visando prevenir qualquer desastre; Plano de Segurança de Barragens; e Plano de Fechamento da Mina atualizado, acompanhado do respectivo Plano de Recuperação de Área Degradada – PRAD.

O Comprova procurou duas vezes a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) do Pará solicitando informações detalhadas sobre a atual situação da mina e andamento do processo, mas não recebeu retorno. A Colossus também não respondeu e a Coomigasp preferiu não se posicionar por telefone ou meio eletrônico.

Não houve retirada de minério no governo Lula

Apesar do anúncio de que havia ouro a ser minerado em Serra Pelada, a empresa Colossus foi embora da região sem extrair nada. Em um comunicado de imprensa feito em 2014 – o último disponível entre os documentos apresentados à Bolsa de Valores de Toronto, a empresa trata do imbróglio com a Coomigasp e afirma que chegou a investir no local R$ 300 milhões. Em outro documento que discute as condições financeiras, apresentado em 2015, a empresa diz que já em janeiro de 2014 havia decidido colocar o programa de Serra Pelada “em manutenção” e não mais investir na mina, uma vez que corria uma disputa na Justiça com a cooperativa de garimpeiros e que isso vinha impedido a empresa de obter financiamento.

O Comprova consultou a ANM e questionou se houve extração e quanto de ouro foi retirado de Serra Pelada nos últimos 20 anos – desde 2003, o primeiro ano do governo Lula. Por e-mail, a agência informou que nada foi extraído nas últimas duas décadas. O Serviço Geológico Brasileiro também foi consultado, mas não respondeu até a publicação deste texto.

Um indício de que nada foi mesmo retirado são imagens de satélite do local do garimpo. A reportagem buscou imagens no Google Earth e encontrou registros de 1985 até 2021. O primeiro, de 1985, não possui boa resolução e, por isso, não é possível ver a situação da mina em pleno funcionamento. A próxima imagem disponível é de 2006, antes das articulações para a chegada da Colossus Minerals e 14 anos após o fechamento do garimpo.

Em imagens de satélite, é possível ver como a cratera permaneceu cheia durante todo o período que compreendeu os governos de Lula, Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), até 2021. As únicas mudanças são a instalação da sede da Colossus e a abertura de uma barragem de rejeitos, que também acabou cheia de água (ela fica visível, já com água, a partir de 2016).

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