Sônia Amaral
COLUNA
Sônia Amaral
Sônia Amaral é desembargadora do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Sônia Amaral

Quem escapa?!

Virou moda um certo “revanchismo histórico” que promete lançar todos os “pecadores” de antanho na fogueira.

Sônia Amaral

Virou moda um certo “revanchismo histórico” que promete lançar todos os “pecadores” de antanho na fogueira. E, literalmente, o movimento tem o propósito de queimar em praça pública — ainda que simbolicamente, ou não, — aqueles que, em seu tempo, teriam feito mais mal do que bem à sociedade, de acordo com critérios particulares.

Exemplos existem à exaustão.

Cristóvão Colombo, embora seja conhecido por “descobrir” a América, é acusado de iniciar um processo de colonização violenta, marcado por escravização, massacres e opressão de povos indígenas. Estátuas suas foram derrubadas ou removidas em diversos países.

Thomas Jefferson, um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, autor da Declaração da Independência e terceiro presidente do país, por ter sido proprietário de escravizados, sofre hoje críticas e linchamento moral.

Padre António Vieira, missionário jesuíta que defendia a catequese e, em certa medida, a proteção dos indígenas, também é acusado de justificar a escravidão africana. Monumentos em sua homenagem têm sido criticados por representar uma visão eurocêntrica e colonialista da história.

Pedro Álvares Cabral, apontado como “descobridor do Brasil”, é igualmente criticado e rotulado como símbolo do início da colonização portuguesa, associada ao extermínio e à subjugação de povos originários. Em protestos, suas estátuas já foram pichadas e tornaram-se alvos de manifestações.

Rui Barbosa, embora lembrado como liberal e defensor dos direitos civis, por ter ordenado a queima dos registros da escravidão no Brasil, é criticado hoje sob o argumento de que apagou a memória histórica e dificultou o reconhecimento de direitos reparatórios aos negros.

Vou parar por aqui, considerando que a lista é extensa e o espaço, pequeno. Contudo, permitam-me alguns questionamentos, precedidos de alguns contextos.

É evidente que ninguém discorda de que a sociedade do século XX não é igual àquela em que vivemos, no primeiro quarto do século XXI. E o que dizer, então, das diferenças abissais entre as sociedades dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX em relação ao presente? Sem sombra de dúvida, vivemos realidades totalmente distintas, sob todos os aspectos: progresso científico, desenvolvimento social, conceitos sobre direitos humanos e igualdade, apenas para citar alguns. Em qualquer direção que se olhe, a sociedade atual carrega conquistas e valores que sequer eram imagináveis nos séculos anteriores.

A sociedade não nasceu pronta e, certamente, nunca estará finalizada. Essa é uma história sem fim, e a busca permanente por melhorias parte do pressuposto de que a perfeição jamais será alcançada. Esqueça!

Com efeito, se nós — hoje e no futuro — mesmo com conceitos mais refinados sobre direitos humanos e igualdade do que ontem, cometemos e ainda cometeremos nossos próprios erros, possivelmente graves, por que exigir do homem do passado — cuja época aceitava e até celebrava valores que hoje condenamos com veemência — uma conduta diferente? Afinal, muitos desses comportamentos eram considerados normais em seu tempo.

Como esperar que homens sempre imperfeitos — vivendo em uma era em que a escravidão fazia parte do cotidiano, a conquista de novas terras era desejada, a mulher era vista apenas como um ser procriador e legalmente subordinada ao marido (como previa o Código Civil de 1917), e em que subjugar os vencidos era tido como missão natural — comportassem-se como se estivessem em 2025?

Nesse contexto, especialmente quanto à escravidão — objeto de justa repulsa nos dias atuais —, é importante lembrar que a prática existiu, independentemente da cor da pele, em diversas épocas e culturas ao longo da história, e em praticamente todos os continentes. O critério principal não era racial, mas sim fatores como guerra, dívida, nascimento ou status social. E, à época, isso era considerado justo: se um país vencia uma guerra, por exemplo, o derrotado se tornava escravo.

Esse tipo de escravidão ocorreu no mundo todo: na Grécia e em Roma, na Antiguidade; no mundo islâmico medieval (Norte da África, Oriente Médio, Pérsia e Península Arábica); na Europa medieval (Rússia, Império Bizantino e reinos cristãos); na China imperial; e na África pré-colonial (Benin, Mali, entre outros).

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, logo no capítulo I, intitulado “O óbito do autor”, o inesquecível Machado de Assis registra:

“O tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto.”

Machado nos diz que o tempo corrói a realidade, altera a memória e transforma o passado — seja diminuindo, distorcendo ou reconfigurando os fatos. E me parece que o julgamento moral de personalidades históricas, feito sem considerar os contextos em que viveram e sob as lentes dos “óculos” contemporâneos, faz exatamente isso: diminui as pessoas ao desconsiderar seus demais feitos, distorce os fatos históricos ao usar a realidade atual como régua e os reconfigura focando apenas nos aspectos negativos. Em resumo, rói tudo como os ratos de Machado.

Na peça Ricardo III, de Shakespeare, recolho a seguinte frase que, talvez, reflita no futuro o drama de todos nós:

“A minha consciência tem milhares de vozes,
E cada voz traz-me milhares de histórias,
E de cada história sou o vilão condenado.”

Seguindo esse caminho, ninguém escapa — nem mesmo os acusadores de hoje.

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