COLUNA
José Lorêdo Filho
Editor da Livraria Resistência Cultural Editora e chanceler do Círculo Monárquico de São Luís
José Lorêdo Filho

Antônio Delfim Netto (1928–2024)

Morre, com Delfim Netto, o último espécime de uma geração de homens de Estado que mudou, talvez para sempre, a fisionomia social do Brasil. Sua influência, nos últimos 60 anos, é verdadeiramente acachapante.

José Lorêdo Filho

Guardo, do saudoso ministro, a lembrança afetuosa de algumas poucas conversas que tivemos em seu famoso escritório do Pacaembu, em São Paulo, quando, sempre mordaz, irônico, mas algo bonachão, recebia-me gentilmente para tratar de assuntos editoriais. Tais encontros logo se transformavam em conversações mais gerais sobre a situação política e econômica do Brasil e do mundo. Ali, recebia meio mundo político e empresarial, em seus variados quadrantes. Quando o exortava a escrever as suas memórias, respondia-me com um sorriso indulgente, e logo mudava de assunto. Desses contatos resultou a excelente coletânea O homem mais realista do Brasil — as melhores frases de Delfim Netto (São Luís: Livraria Resistência Cultural Editora, 2015), organizada pelo mestre Aristóteles Drummond, grande amigo e correligionário do frasista, e que tive a grande satisfação de publicar. Desde então, recebia do ministro Delfim Netto os livros que ia publicando por outras editoras, com a sua costumeira dedicatória lacônica, em letra miúda. Gosto, particularmente, de um dos livros que o José Mário Pereira editou (O mercado e a urna — textos de economia e política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002) e o mais recente O homem econômico (São Paulo: Três Estrelas, 2018).

Sua atuação como estadista ainda aguarda o crivo da história. Coube-lhe pertencer a uma geração de economistas brasileiros, em grande medida, desafiada pelo problema do desenvolvimento sustentável. Aliás, era esta a grande preocupação mundial, em face dos problemas gerados pela falência do capitalismo oitocentista e pela explosão da questão social em todo o mundo, com as respostas que lhe ofereceram tanto a direita, com a excelência e inteireza doutrinal dos documentos pontifícios, quanto a esquerda, que, com ímpetos de utopia avassaladora, quase pôs abaixo o que restava de mundo civilizado. Aí está a história do século XX, que não me deixa mentir.

Esteve no radar daquela geração espiritualmente formada na primeira metade do século XX a resolução dos problemas atinentes à erradicação da miséria, aos grandes desníveis regionais do Brasil, à distribuição de renda, ao acesso ao mercado de trabalho e à propriedade privada, de par com a necessidade de se erigir uma ordem econômica justa, legítima e, na medida do possível, duradoura. Eugênio Gudin, Roberto Simonsen, Otávio Gouveia de Bulhões, Ernane Galvêas, Roberto Campos, Delfim Netto, João Paulo dos Reis Velloso, Mário Henrique Simonsen foram alguns dos notáveis que se defrontaram com tais problemas e que muito concorreram para a sua atenuação, participando ativamente do que poderíamos chamar de o grande processo brasileiro de modernização econômica, financeira e administrativa dos últimos 60 anos. Já fui mais entusiasta de tal processo; hoje, caminhando mais e mais para a direita monárquica e tradicional, percebo-lhe as muitas inconveniências, com a consolidação, entre nós, desse monstro pavoroso que é o Estado moderno. Ocupei-me, ainda que sucintamente, desse tema aliciante na biografia que do ministro Galvêas escrevi em parceria com o Aristóteles Drummond (Ernane Galvêas — um servidor do Brasil. São Luís: Livraria Resistência Cultural Editora; Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio, prefácio de José Roberto Tadros, 2023).

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No palco menor do partidarismo miúdo em que jaz o debate econômico no Brasil, era Delfim Netto, já de algum tempo, o que chamaríamos de “primus inter pares”. Entre os economistas, nenhum outro o suplantava em experiência acumulada, em argúcia política, em ampla cultura humanística conjugada com o saber propriamente técnico e especializado. Por isso mesmo era apenas tolerado pelas esquerdas — que não esqueciam o ministro dos presidentes Costa e Silva, Médici e Figueiredo e sua condição de principal responsável pelo chamado “milagre econômico brasileiro” da década de 1970 — e, já não de hoje, execrado por parte da direita que aí está, que não lhe perdoou a aproximação com o presidente Lula. Depois da tragicomédia do governo Dilma Rousseff, Delfim Netto acabou sendo um dos principais interlocutores do presidente Michel Temer, ao qual não tardará o juízo favorável da história, tal como destacado pelo professor Ives Gandra da Silva Martins, na introdução à 4ª edição do seu Uma breve teoria do poder (São Luís: Livraria Resistência Cultural Editora, 2021), que tenho tido a honra de reeditar sucessivamente.

“Comunista” para a direita de militância virtual, “ultra-reacionário” de acordo com a narrativa francamente anacrônica das esquerdas, era Delfim Netto, entretanto, um homem de Estado para quem o processo histórico caminhava num sentido de melhores níveis de vida. Alguma razão haveria de ter, ao menos até certo ponto.

O seu amigo Roberto Campos dizia que não pode ser apenas economista quem quer ser um bom economista. O pensamento encerra uma grande verdade — embora autônoma como ciência, a economia não pode prescindir do amparo da cultura, da religião, do direito, da literatura, até das artes em geral, pois o homem (que, em suas relações com os bens externos materiais, é o objeto da economia) é ser complexíssimo, com enquadramento sempre provisório, de natureza tão estática quanto de mentalidade variável. Um ser assim não pode servir de simples moldura a quaisquer arranjos de natureza científica ou ideológica. Foi imbuída, de algum modo, de tal perspectiva dinâmica que a geração de Delfim Netto soube cumprir o seu papel histórico. Acertando, errando, com uma visão não raro apriorística, mas ainda sob os ditames da legitimidade. Foi este o maior legado do grande economista e estadista.

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