O cérebro e o caso dos “Inocentes de Guildford”
Falamos sobre o caso dos “Inocentes de Guildford” e sua relação com um fenômeno chamado interpolação cerebral.
Em 1974, a cidade inglesa de Guildford foi palco de uma série de atentados a bomba atribuídos ao Exército Republicano Irlandês (IRA), que mataram cinco pessoas e feriram outras 65. Em resposta, a polícia britânica, sob forte pressão para encontrar os culpados, prendeu quatro pessoas: Gerry Conlon, Paul Hill, Paddy Armstrong e Carole Richardson.
Durante o interrogatório, os quatro foram submetidos a tortura e coação, confissões falsas, testemunhas falhas e falta de evidências contundentes. Apesar da falta de provas concretas e da retratação posterior das confissões, eles foram condenados à prisão perpétua em 1975.
Os condenados e seus apoiadores continuaram a lutar pela sua inocência. Em 1989, após anos de campanhas públicas e investigações adicionais, foi revelado que a polícia havia manipulado provas e ocultado evidências que poderiam ter provado a inocência dos quatro.
Em 19 de outubro de 1989, o Tribunal de Apelação de Londres anulou as condenações dos quatro, reconhecendo que eles haviam sido vítimas de um grave erro judicial. Eles foram libertados após passar 15 anos na prisão. Em 2005, o Primeiro Ministro britânico Tony Blair fez um pedido formal de desculpas aos quatro pelo erro judicial que sofreram.
Durante o processo judicial, grande parte da evidência contra os chamados “Quatro de Guildford” baseou-se em confissões que foram mais tarde reveladas como tendo sido obtidas sob coação e tortura. Além disso, houve uma dependência excessiva em relatos de testemunhas que, sob pressão e influência das circunstâncias, podem ter preenchido lacunas em suas memórias com informações que não eram precisas – um fato chamado de “interpolação cerebral”.
A interpolação é largamente usada, por exemplo, no processamento de imagens. Ela é uma técnica usada para redimensionar imagens, preencher lacunas em dados faltantes ou suavizar a imagem. Isso é feito estimando os valores de pixels que não são explicitamente presentes na imagem original.
A interpolação é essencial para aumentar a resolução de uma imagem sem perder qualidade. Ela cria novos pixels entre os pixels originais, preenchendo as lacunas e gerando uma imagem maior e mais detalhada. Ela pode também ser utilizada para suavizar imagens com ruído, substituindo pixels com valores discrepantes por uma média ponderada dos pixels vizinhos. Ela igualmente pode ser uma ferramenta para corrigir distorções geométricas em imagens, como deformações causadas por lentes ou problemas de captura.
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A interpolação não é um fenômeno só das máquinas. De fato, o cérebro humano é suscetível a vários tipos de distorções de memória, especialmente em situações de estresse ou quando incentivado a se lembrar de detalhes sob pressão. No caso do Guildford Four, as testemunhas podem ter sofrido de "falsas memórias" ou podem ter preenchido inconscientemente as lacunas em suas recordações com informações que pareciam plausíveis, mas que na realidade não eram corretas.
O cérebro humano é extremamente adaptável e eficiente em lidar com informações incompletas ou ambíguas. Ele faz isso através da interpolação, da mesma forma que os programas de computador fazem com imagens. Ou seja, o cérebro é capaz de preencher lacunas na informação com base em experiências passadas, conhecimento prévio e contexto. Esse processo ocorre em vários níveis cognitivos, incluindo percepção, memória e raciocínio.
O cérebro é capaz de completar informações visuais que faltam. Similar aos programas de computador que trabalham com imagens, se parte de uma imagem estiver oculta, o cérebro pode inferir o que está escondido com base no contexto e na forma geral do objeto. Quando lembramos de eventos passados, o cérebro frequentemente preenche detalhes que podem não ter sido originalmente armazenados na memória, ou seja, são falsos. Isso é feito com base em experiências semelhantes ou no que se espera que tenha ocorrido, resultando em uma reconstrução da memória que pode não ser totalmente precisa.
Mais ainda, ao ouvir ou ler uma frase com palavras faltando ou ambíguas, o cérebro utiliza o contexto e o conhecimento prévio para preencher as lacunas, permitindo-nos compreender o significado pretendido mesmo sem todas as informações. O cérebro também constantemente faz previsões sobre o que vai acontecer a seguir, com base em padrões e experiências passadas. Essa capacidade de interpolação é fundamental para a tomada de decisões e o planejamento futuro.
Os "Inocentes de Guildford" demonstra como a busca incessante pela justiça pode levar a erros terríveis quando não se reconhecem as falhas da memória humana e os efeitos da pressão social. Essa história é também um lembrete constante da importância de um sistema judicial atento aos fenômenos cerebrais e neurocientíficos.
*Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.
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