COLUNA
Sônia Amaral
Sônia Amaral é desembargadora do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Sônia Amaral

Sem “mas”

Lampião era, na verdade, amigo dos coronéis e a estes prestava serviços, notadamente contra os pobres posseiros.

Sônia Amaral

Atualizada em 17/10/2024 às 13h39

Diante do conflito no Oriente Médio, entre o Hamas e o estado de Israel, fui revisitar algumas obras que trataram da conduta de Lampião e seu bando no sertão nordestino, na década de 30.

Os jornais da época relatam que Lampião não se limitava a roubar os pobres, pois estuprava as mulheres, inclusive crianças e senhoras de idade, na frente dos pais, maridos e filhos; ferrava o rosto ou genitália de mulheres que ousavam cortar o cabelo curto (à la garçonne) ou que este entendesse não ter um comportamento compatível com a noção do que seria “mulher honesta”; matava indiscriminadamente homens, também independente da idade ou da condição física, quase que invariavelmente precedida de tortura. 

Os relatos são tão dramáticos e bárbaros que não ouso apresentar com detalhes neste espaço. Contudo, sem entrar em maiores minúcias, registro, para exemplificar o seu nível de crueldade, que o cangaceiro e seu bando chegaram a estuprar Maria Nazaré, uma menina cega de 10 anos, na frente do pai. E, também, que os estupros eram coletivos, chamados de “gesta”, pois Lampião praticava o crime sucedido dos comparsas. 

Fora isso, diferente de quem alega ser este um justiceiro social, ou seja, que roubava dos ricos para dar aos pobres, Lampião era, na verdade, amigo dos coronéis e a estes prestava serviços, notadamente contra os pobres posseiros. Ele acumulou uma fortuna considerável com a pilhagem e com os trabalhos realizados em prol dos poderosos, tanto que tinha costumes, nos trajes usados e na bebida consumida, de gente rica. 

Na verdade, a complacência com que alguns trataram e tratam o rei do cangaço, vide a homenagem que a escola de samba Imperatriz Leopoldinense fez a ele neste ano, justifica-se pela criação do mito por Carlos Prestes, que, em um ato que se chamaria hoje de fake news e movido por interesses ideológicos de ter alguém do povo como defensor dos pobres, criou a narrativa do justiceiro social. Essa tese, baseada em pesquisas sérias, que se valem de relatos dos jornais e depoimentos de vítimas desse monstro chamado Lampião, não se sustentam.

Por sinal, Eric Hobsbawn, historiador e marxista respeitável pela obra – que podemos até não concordar, mas que mantém rigor teórico –, no livro “Bandidos” diz o seguinte sobre Lampião: “Causar terror e ser impiedoso é um atributo mais importante para esse bandido do que ser amigo dos pobres”. 

O caro leitor já deve estar perguntando: e o que tem Lampião a ver com o ataque a Israel pelo Hamas. E eu adianto a resposta: tudo.

O que aconteceu no dia 07 de outubro foi um ataque terrorista, promovido por um grupo terrorista, contra pessoas que vivem, viviam ou apenas estavam de passagem, no estado de Israel. O que aconteceu, a exemplo do que fazia o facínora do Lampião e seu bando, foi um ataque bárbaro contra civis indefesos.

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O ato do Hamas, mistura de organização política e grupo armado que governa a Faixa de Gaza, território incrustado no estado de Israel e em que vive o povo palestino, não pode ser considerado, pela forma, como ato de combatentes. Os combatentes regulares em uma guerra miram os combatentes opositores do outro país que desejam agredir, e não civis; e as armas usadas, além das regulares, não podem ser o estupro de mulheres, a tortura de idosos, a decapitação de crianças e o sequestro de civis. 

O estupro de mulheres, a tortura de idosos, a decapitação de crianças e o sequestro de civis são atos de quem pratica o terror, como forma de amedrontar, aterrorizar, coagir, ameaçar e chantagear, como fazia Lampião. Até nas guerras existem normas e limites que devem ser observados e não podem ser ultrapassados, sob pena de punição pelo Tribunal Penal Internacional. Nesse contexto, uma das mais relevantes normas, e que não comportam justificação sob qualquer parâmetro, é que os civis devem ser protegidos e respeitados, pelos dois lados, de um embate com armas. 

Portanto, apesar de o Hamas ser o braço político da Faixa de Gaza, os atos praticados pelo braço armado são de puro terrorismo, não podendo chamá-los de combatentes. 

Dito isso, é importante ainda registrar que o Hamas assumiu politicamente a Faixa de Gaza em 2006, ao vencer as eleições contra o partido Fatah; que depois disso não tiveram mais eleições, porque este impôs uma gestão autoritária e teocrática, em que vigora, por exemplo, o controle absoluto sobre as mulheres e a criminalização do homossexualismo, com a pena de morte.

Com relação ao estado de Israel, o Hamas estabelece, em seus estatutos, que só há uma saída possível para a resolução do conflito: a destruição do estado de Israel. Em suma, não há como Israel, ou qualquer outro intermediário, tentar resolver a demanda que causa o atrito de forma conciliada, como já o fez o Fatah, em certa medida, em relação à Belém e Jericó, que ficam na Cisjordânia e são administradas pela Autoridade Palestina. 

Por tudo isso, não se pode condenar as condutas do Hamas colocando, em seguida, o “mas”, que de maneira velada justifica tais atos de terrorismo. A criação do estado Palestino é ato de justiça, mas (e aqui cabe um “mas”) o Hamas não luta por isso, já que condiciona a paz à destruição de um povo e de um estado, no caso dos israelitas e de Israel, sendo o povo palestino, que deseja realmente a criação do estado Palestino, tão vítimas do Hamas, quando o povo de Israel.

Concordar com esse estado de coisas, colocando um “mas” para justificar a barbárie, desculpem, só tem uma explicação: lá no fundo essas pessoas compartilham do mesmo sentimento de Hitler e optaram pela “solução final”, colocada em prática durante a Segunda Guerra Mundial, e que terminou na morte de seis milhões de judeus.

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