Democracia, pero no mucho?
Prender e arrebentar para impor o regime democrático é qualquer coisa, menos regime democrático.
Tenho me lembrado muito do ex-presidente João Figueiredo, último mandatário do executivo federal da época que se convencionou chamar de “Regime Militar”, que teve início em 1964 e findou em 1984 com a eleição indireta de Tancredo Neves, tendo como vice o conterrâneo José Sarney.
Lembrei-me do General Figueiredo porque este deu início à abertura política, com o propósito de devolver a governança do país a candidaturas civis eleitas pelo sufrágio universal e se deparou com resistência de uma parte dos militares. Os contrários à abertura chegaram a detonar uma bomba em um show no Riocentro, no Rio de Janeiro, em uma típica operação tabajara, uma vez que o artefato explodiu no colo dos próprios autores do atentado.
Em face dessa resistência de uma parte da caserna em ver o Brasil retornar aos trilhos da democracia, o Presidente João Figueiredo disse que ia “prender e arrebentar” quem se opusesse. Noutras palavras: em defesa da democracia, o general prometia usar a força bruta.
Ora, força bruta é justamente o oposto daquilo a que se propõe o regime democrático. Um regime que se impõe pela força, não há liberdade para pensar diferente daquilo que pensa e quer o governante de turno; um regime que se impõe pela força, não há que se falar em democracia. No regime democrático vige o poder do argumento; do debate, muitas vezes discordante, mas respeitoso; da tolerância entre diferentes pontos de vista; da prevalência da vontade da maioria, com observância dos direitos da minoria.
Prender e arrebentar para impor o regime democrático é qualquer coisa, menos regime democrático.
E o que tem a ver esse fato do passado com os dias atuais? Não, não se trata de saudosismo, muito pelo contrário. Trata-se de espanto em ver que certas pessoas, usando a democracia como escudo, têm atentado contra ela de forma despudorada.
Dois fatos, entre muitos que vivenciamos nos dias que correm, exemplificam essa observação: a uma, a lei que diz querer impedir a tal fake news e a propagação do ódio, e, a duas, o pedido de cassação da concessão da Jovem Pan.
Os defensores da proposta de lei de “combate” a fake news e da propagação do ódio afirmam ser necessária a regulamentação das condutas nas redes por conta dos muitos crimes ali praticados, dentre os quais destacam-se os de ofensa à honra (calúnia, injúria e difamação), de pedofilia e de incitação ao crime.
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Primeiro, tanto a pedofilia como a incitação ao crime não acontecem às claras, mas sim no submundo das redes sociais, ou seja, na deep web, igual ao que acontece na vida concreta, fora das redes. Afinal, ninguém pratica pedofilia ou incitação ao crime em praça pública, mas sim às escondidas. Portanto, tanto os crimes que acontecem nas redes sociais, quanto os que acontecem no espaço físico e concreto da vida diária podem, e devem, ser combatidos pelos mecanismos legais já existentes, competindo à autoridade policial correr atrás, nas redes ou na viatura policial, daqueles que praticam os tipos penais. A mesma coisa vale para o combate aos crimes contra a honra.
Segundo, o que pode ser considerado fake news e quem definirá o que é e o que não é? Uma empresa de checagem de notícias, o Estado via comissão, conselho ou agência regulatória? Em todos os casos, quem escolherá os fiscais e seguindo quais critérios? E quem fiscalizará o fiscal?
Não faz muito tempo, as notícias e análises dos fatos eram trazidas a público apenas via mídia tradicional (jornal impresso, rádio e televisão), logo, de forma centralizada. Com as redes sociais, qualquer um que tenha, no mínimo, um celular pode disponibilizar notícias e fornecer análises dos fatos, tornando essa atividade descentralizada.
Com essa descentralização, erros acontecem? Sim. Há viés ideológico? Também sim. Mas isso não aconteceu e acontece também na mídia tradicional? Claro que sim. Um só exemplo, dentre inúmeros, de erros praticados pela mídia tradicional: o caso da Escola de Base, localizada em São Paulo, cujos donos e professores foram denunciados na imprensa tradicional por abuso sexual de crianças, foram presos, tiveram suas vidas destruídas profissional e pessoalmente e depois ficou provado que os crimes não existiram.
Por fim, sobre o pedido de perda da concessão da Jovem Pan parece-me que o “prende e arrebenta” ainda é mais gritante. Não podemos esquecer que na Venezuela, com a ditadura iniciada por Hugo Chávez, e continuada por Nicolás Maduro, o primeiro passo foi a derrubada de um dos pilares da democracia: a liberdade de imprensa.
Quando empresas de jornal, rádio e televisão fizeram críticas ao governo de Hugo Chávez a decisão foi de cassar as concessões. Da mesma forma, nas ditaduras comunistas de Cuba e da antiga URSS – ficando só nessas duas, porque o modelo aconteceu (e acontece) em todos os países de igual regime – o primeiro ataque foi à liberdade de imprensa, quando os jornais Granma e Pravda, respectivamente, passaram a ser as únicas vozes permitidas.
Como disse uma vez a ministra Carmem Lúcia, e gosto muito de repetir, “cala a boca já morreu” e se queremos permanecer em um regime democrático, “a pior forma de governo, à exceção de todas as demais”, como disse uma vez Winston Churchill, há que se valorizar as muitas vozes permitidas pelas redes sociais, combatendo eventuais crimes como se faz na vida fora das redes, e defender até o último homem a liberdade de imprensa diversa e plural.
Portanto, respondendo à pergunta inicial: muita democracia, democracia em abundância, democracia absoluta, democracia sempre. Democracia, democracia e democracia!
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