A geração liberal da década de 1970
Tal direita liberal, de rigor, é herdeira, e assim se considera, do pensamento de Locke, Montesquieu e Kant e bebe das fontes da experiência constitucional britânica.
Já tive ocasião de comentar desta tribuna alguns fatores que ensejaram o renascimento de uma direita conservadora no Brasil — vale dizer, daquele conjunto simultaneamente firme e flexível de princípios, de base tão acendrada quanto de superfície variável, sob o qual se desenvolveram, ao longo dos últimos dois séculos e meio, os partidos da autoridade, ou da liberdade ordenada, em todo o mundo.
E quanto à direita liberal? A bem da verdade, já a tínhamos razoavelmente sólida e atuante, nitidamente demarcada do chamado “democratismo”, decorrente das teses relativas à “vontade geral” de Rousseau, esta muito mais identificada com as esquerdas “ortodoxa” e “progressista”. Tal direita liberal, de rigor, é herdeira, e assim se considera, do pensamento de Locke, Montesquieu e Kant e bebe das fontes da experiência constitucional britânica.
Depois do naufrágio da UDN, foi ganhando corpo, em meados da década de 1970 — em meio à obtusidade do ciclo militar, tão pródigo em realizações materais, mas incapaz de qualquer renovação política —, uma brilhante geração de professores, ensaístas, jornalistas, cientistas políticos e filósofos de orientação liberal, parte da qual se impôs a tarefa ingente de revisar de modo criterioso todo o pensamento político brasileiro. Renovando tanto o liberalismo clássico quanto a tradição culturalista que remonta a Tobias Barreto, e sob o forte impacto do catolicismo “conservador” oriundo e permitido pelo Concílio Vaticano II (1962 – 1965), tal geração liberal acabou se consubstanciando partidariamente na experiência inegavelmente meritória do PFL (Partido da Frente Liberal).
Alguns dos mais representativos nomes dessa geração falam por si, alguns dos quais tive a honra de conhecer e ter como amigos — Antonio Paim (1927 – 2021), grande historiador das ideias, liberal de corte clássico; Ubiratan Borges de Macedo (1937 – 2007), autor do admirável A ideia de liberdade no século XIX — o caso brasileiro (São Paulo: Expressão e Cultura, 1997); Ricardo Vélez-Rodríguez (1943 – ), o nosso maior estudioso do liberalismo doutrinário, de cujo labor resultou o livro O liberalismo francês — a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil (Londrina: Editora E. D. A., 2023); Roque Spencer Maciel de Barros (1927 – 1999), o primeiro daquela geração a expor em livro as novas ideias (Introdução à filosofia liberal. São Paulo: Grijalbo / EDUSP, 1971); Arsênio Eduardo Corrêa (1945 – ), importante estudioso do pensamento político brasileiro.
Colateralmente, assomam os seguintes nomes: Miguel Reale (1910 – 2006), que, superando de vez a sua fase integralista, formulou um ideário social-liberal muito particular em seus livros Liberdade e pluralismo (São Paulo: Saraiva, 1963) e Experiência e cultura (São Paulo: Grijalbo, 1977); Walter Costa Porto (1940 – ), o maior eleitoralista brasileiro, professor da Universidade de Brasília e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral; Carlos Henrique Cardim (1948 – ), o grande editor brasileiro em âmbito acadêmico, autor de um livro fundamental sobre a atuação diplomática de Rui Barbosa; Paulo Mercadante (1923 – 2013), autor do indispensável A consciência conservadora no Brasil (4ª ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 2003), que estuda a constante “conservadora”, tendente à conciliação, de nossa formação cultural; Aristóteles Drummond (1944 – ), mestre do jornalismo brasileiro, espírito essencialmente saquarema; Marco Maciel (1940 – 2021), publicista e estadista de perfil saquarema; João Mellão Neto (1955 – 2020), o renovador da “práxis” liberal-conservadora da década de 1980; José Maurício de Carvalho (1957 – ), professor universitário e historiador das ideias; Nelson Lehmann da Silva (1939 – 2011), professor universitário, autor do livro A religião civil do Estado moderno (2ª ed., Campinas: Vide Editorial, 2016); Roberto Campos (1917 – 2001), sem exagero uma das mais luminosas inteligências da história pátria, talvez o mais importante personagem do que chamaria de processo brasileiro de modernização econômica, financeira e administrativa, que teve lugar na segunda metade do século XX; João de Scantimburgo (1915 – 2013), grande historiador e jornalista monárquico, antes um conservador; José Osvaldo de Meira Penna (1917 – 2017), diplomata e ensaísta vigoroso; Gilberto de Mello Kujawski (1929 – ), filósofo de orientação orteguiana; Gilberto Paim (1919 – 2013), jornalista e ensaísta, estudioso do “momento pombalino” em nossa história (De Pombal à abertura dos portos. Rio de Janeiro: Editorial Escrita, 2011); José Guilherme Merquior (1941 – 1991), grande escritor e polemista, autor de, pelo menos, um clássico (O liberalismo — antigo e moderno. 2ª ed., São Paulo: É Realizações, 2014).
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Tal geração — que assombra pela variedade e substância e que não é, definitivamente, obra do improviso ou de circunstâncias ocacionais — foi abrigada tanto no Partido da Frente Liberal, pela visão dos senadores Marco Maciel e Jorge Bornhausen, quanto — embora em menor escala — no Partido Progressista (PP), continuador do Partido Democrático Social (PDS), liderado por figuras como os senadores Jarbas Passarinho e Francisco Dornelles.
Mas também na Sociedade Tocqueville — fundada na poeira morta de Brasília, em 1986, pelo embaixador José Osvaldo de Meira Penna —, no Instituto Liberal — criado no Rio, em 1983, pelo empresário Donald Stewart Jr. — e, também do Rio de Janeiro, no Conselho Técnico da Presidência da Confederação Nacional do Comércio, presidido pelo ex-ministro Ernane Galvêas, que logrou transformar o órgão de assessoramento da CNC no mais sólido agrumento da elite intelectual, econômica, jurídica e diplomática do país.
Foi uma geração de grande nomeada. Mas que não deixou herdeiros do mesmo nível (com as exceções de praxe, um Paulo Kramer, um Alex Catharino, dois conservadores abertos ao liberalismo) e não chegou ao poder. O curioso é que fatalmente fariam um presidente da República, o deputado Luís Eduardo Magalhães (1955 – 1998), morto tão precocemente. Foi um grande presidente da Câmara dos Deputados e teria sido um grande presidente da República.
O máximo que tal geração conseguiu, em termos de exercício do poder, foram os dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, com a figura de primeira grandeza do senador Marco Maciel exercendo a vice-presidência. O esquerdismo de FHC não o deixou viabilizar o candidato natural à sua sucessão, que seria o seu próprio vice, naquele já longínquo ano de 2002. Preferiu viabilizar a sua condição de “Kerensky brasileiro”, ou de “Eduardo Frei brasileiro”, ao muito contribuir para a eleição de seu “adversário” Lula da Silva. Foi o coroamento da república brasileira, mesquinha e inoperante.
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