Portas sempre abertas, nunca escancaradas
As relações humanas são de uma complexidade desafiadora. Ao mesmo tempo em que somos instados a nos relacionar, somos desafiados a, nessas relações, mantermo-nos íntegros, se assim se pode dizer, em essência e em verdade.
Fila do pão, conversa miúda entre duas senhoras e uma jovem que acabara de chegar e ser apresentada como filha de uma delas. A conversa era sobre um sobrinho que faz intercâmbio no exterior e estaria voltando para casa nos próximos meses. Certa angústia parecia perturbar a alegria da mãe que, ansiosa, receberia de volta o filho, que, ao que parece, não viria só. Daí, surge uma afirmação em tom de sermão: - “abra as portas, só não as escancare”.
As relações humanas são de uma complexidade desafiadora. Ao mesmo tempo em que somos instados a nos relacionar, somos desafiados a, nessas relações, mantermo-nos íntegros, se assim se pode dizer, em essência e em verdade. Todo agir humano existe em função do outro, seja no sentido de realização como ser, ou mesmo na ambição própria da lei da sobrevivência. Um desafio, realmente, a inquietar mentes e corações.
É verdade que, com o passar dos anos, vamos triando melhor as mesas as quais sentamos e as cadeiras postas com as quais acolhemos que ali busca assento. Tudo, absolutamente tudo, emparelha-se, molda-se, resolve-se na dinâmica sadia do passar do tempo. Ao passo que, ele mesmo, o tempo, também nos impõe ou nos presenteia com entradas e saídas, não de casa, mas da vida, como na canção serena e paradoxalmente perturbadora de Oswaldo Montenegro: “Faça uma lista de grandes amigos, quem você mais via há dez anos. Quantos você ainda vê todo dia Quantos você já não encontra mais?”. – é a imagem da vida – , lista sempre incompleta, que nos leva ao que sobra, ao que somos, ao que é, ou devia ser a vida e o viver!
A abertura à atitudes novas, à opções corajosas e por vezes perigosas no processo de amadurecimento, pode e deve nos permitir avançar sem medo, sem receio das deformações próprias do caminho, quando o destino é a realização plena do nosso ser. Em outro plano, podem, quando tendem ao medo, imobilizarmos e nos impedir de estarmos abertos ao descortinar da vida, portas afora!
A imagem da porta é intrigante, Jesus a utilizou, falando de si mesmo: “Eu sou a porta por onde passam as ovelhas” (Jo 10, 7). Nestes tempos em que nos trancamos cada vez mais, portas abertas nos remetem à segurança, à confiança ou à displicência. Quando recebemos alguém em nossa casa, receber e deixar na porta são gestos de deferência, exprimem gentileza e conferem certa solenidade ao momento do encontro. Abrir as portas é permitir o acesso, o convívio, um adentrar à intimidade. É abrir-se, sem mais! Mas, o que mesmo por significar abrir sem escancarar? Foi nessa vírgula que parei, naquela fila. Essa reserva de precaução é liberdade ou desconfiança? Prudência ou insegurança? Medo do outro ou do inesperado que o ato de abrir portas, figurativamente ou não, à vida concede como surpresa?
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Em todos os casos, o correr do tempo tende a diminuir nossas listas ou a modificá-las. Os convivas de ontem podem não ser mais os de hoje, nem tampouco os de amanhã. Isso não alija nossa personalidade, não diminui nosso valor, não nos torna menos humanos ou menos fraternos, apenas nos torna capazes – ou incapazes – de experimentar o fruto da maturidade, da capacidade de escolher ou de esquecer, de juntar ou dispersar, de abrir ou de escancarar. Talvez um pouco do que diz Fernando Pessoa: “Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta”.
Não sei quem aquela senhora receberia em casa, também desconheço os motivos para tanto receio. Mas sei que abriria as portas para quem viria acompanhando seu filho, ainda que receosa. Um pouco disso que muitas vezes acontece, portas não são abertas apenas por pessoas, mas por motivações. Importante é não nos fecharmos às surpresas de um encontro, que de incômodo, pode tornar-se prazeroso e contagiante. Por outro lado, abrir as portas, mesmo com o coração fechado, sempre será um exercício de humanidade. Abri-las quase sempre! Escancará-las, quando preciso, sem temor do erro, pois o que é verdadeiramente essencial, já em nós reside, seguro e abrigado.
Isto não nos deforma, sem medo! Volto ao Pessoa para tranquilizarmo-nos: “Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril". Abrir portas podem ser desses gestos que nos colocam frente a frente com a delícia de ser que cada um guarda em si, tesouros de essência, do que somos e para o que existimos!
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