COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kecio Rabelo

“Dai-lhes vos mesmos de comer”

A fome é criação divina. É um instinto biológico necessário à sobrevivência humana.

Kecio Rabelo

Atualizada em 02/05/2023 às 23h50

A fome é criação divina. É um instinto biológico necessário à sobrevivência humana. Conhecida de muito pela humanidade, a fome por falta de alimento, é um flagelo terrível, uma perversão social, já que o direito ao alimento, é tão essencialmente natural como o direito à vida e precede toda e qualquer positivação de ordem jurídica ou social.

A Campanha da Fraternidade de 2023, promovida há seis décadas pela CNBB, traz, pela terceira vez a reflexão sobre a fome, suas causas e mazelas. Emblemático, porém, que tantas edições depois, o esforço por soluções tenham tornado esse um desafio gigante. Eis porque, iluminador, - e oportunamente provocativo - o lema da campanha, extraído do Evangelho de Mateus 14,16: “Dai-lhes vos mesmo de comer”, a merecer nossa atenção. Não para fazer exegese, tampouco afirmativas doutrinárias, esse texto pode nos inspirar e comover, por que não? Ao ver a multidão presente em um local deserto, distante e com poucos recursos, os discípulos vão até Jesus levando uma preocupação. Onde conseguir comida para tanta gente? A solução, apressada, e não acertada vem em seguida: “é melhor despedi-los, mandá-los embora”. A réplica de Jesus resume sábio e óbvio imperativo: “Dai-lhes vos mesmos de comer”. Ao chamar o homem à responsabilidade para com o seu semelhante, Jesus estabelece o dever da partilha, de organização e da fraternidade. Rompe a lógica do individualismo e do espiritualismo separatista, que afasta, oprime e escraviza. De outro lado, depõe o ativismo da esmola, e estimula a colocar em comum para em comum distribuir e saciar. Convida, portanto, à ação generosa, firme.

A fonte primária da fome é a má distribuição da terra, geradora e perpetuadora de tantas desigualdades sociais. Depois, a concentração insana da riqueza nas mãos de pessoas, grupos e países, o desperdício e o consumo desenfreado de alimentos e a terceirização da responsabilidade individual e coletiva com relação ao tema. Se a mim e aos meus, a vida nos sacia, aos demais, reste como destino a indiferença. É o antigo pecado de Caim, não se sentir responsável pela vida do próximo, ainda que o próximo seja seu próprio irmão. Há sempre a tentação da dispersão, do mandar embora de mãos vazias, da morte como saída. A indiferença, portanto, perpetuada.

Campanha da Fraternidade

É verdade que é dever do Estado garantir que todos e todas tenham direito a segurança alimentar como princípio básico de sobrevivência. Mais o tema supera em muito o debate sobre dados, índices ou custos da definitiva extirpação da fome. É nosso dever pessoal, colaborar com erradicação da miséria e da fome, mudando hábitos de desperdícios, nos engajando em ações coletivas e fomentando uma verdadeira conversão e consciência coletiva. A fome é um grave pecado social que grita aos nossos ouvidos. É nossa obrigação comovermo-nos e agirmos, pensando como cristãos.

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No deserto dos nossos dias, onde a distância da indiferença nos impõe limites intransponíveis, se faz necessário um novo olhar sobre a realidade da fome, a começar pela forma como encaramos e tratamos o tema. Quem tem fome, tem pressa! A superação da fome não é uma pauta de direita ou de esquerda; é antes de tudo uma causa a ser abraçada por todos e todas, sem nenhuma distinção. É, ou deveria ser, a principal bandeira dos homens e mulheres de boa vontade.

Enquanto convertemos dados em atitudes concretas, juntemo-nos à utopia de Luther King na “audácia de acreditar que os povos em todos os lugares podem fazer três refeições por dia para seus corpos, ter educação e cultura para suas mentes e dignidade, igualdade e liberdade para seus espíritos”. O Pai Nosso, que nos ensinou a pedir o Pão Nosso, nos faça, ao redor de nossas mesas, conscientes e constrangidos a, menos pedir, mais repartir e distribuir pão e direitos, para fazer sobrar alegria e esperança. Que o nosso destino seja, portanto de partilha e compaixão. Ainda que o pouco pareça pouco, diante desse desafio, é o pouco – vindo da atitude de cada um – que somado será muito!

 

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