COLUNA
Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

A queda do céu

A importância dos conhecimentos ancestrais para a formação do Arco Norte.

Allan Kardec

Atualizada em 02/05/2023 às 23h38
 

Onama plantou essas árvores de cantos nos confins da floresta, onde a terra termina, onde estão fincados os pés do céu sustentado pelos espíritos tatu-canastra e os espíritos jabuti.

Dessas bocas inumeráveis saem sem parar cantos belíssimos, tão numerosos quanto as estrelas no peito do céu.

Os trechos acima são do livro que ilustra o início desta crônica, que é de autoria do xamã yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. Primeiramente, é bom esclarecer que Davi não é Davi: é um nome que deram religiosos americanos que foram catequizar os indígenas no século passado na região amazônica. Anote: pleno século 20!

Há muito Brasil nesse livro! Não só peças e partes de beleza ímpar, poesia do coração da Amazônia, mas luzes incendiárias que clareiam a alma do nosso país. Mas igualmente questiona os caminhos feitos e sugerem trajetórias futuras.

Vamos à uma das partes mais interessantes, em minha visão. O livro é basicamente um relato, em primeira pessoa, de Kopenawa. Como ele se tornou xamã? O que precisa? Como se fez a iniciação?

O livro é uma tradução, certamente trabalhosa, de Albert, para o francês, que só recentemente foram transladadas para o português. Ele gravou em fitas cassetes, claro, depois de aprender o idioma yanomami, e deixou essa contribuição extraordinária para a História do Brasil.

Talvez a coisa mais próxima disso, pelo pouco que conheço, pois não sou da área, é o relato de Yves D’Évreaux sobre a ação dos frades capuchinhos no Maranhão relatando como os tupinambás reagiram à invasão europeia em nossas terras. De um lado, os franceses, de outro, os portugueses. A tecnologia da guerra, obviamente beneficiava estes últimos, porque tinham armas poderosíssimas à época. Mas os brasileiros, digo, os indígenas, foram “convidados” a se posicionar. 

O texto de D’Évreaux é extraordinário. Diria que até mesmo informal e atual para a época, em um texto gostoso de se ler. Nele, conhecemos um Maranhão do início, da época da fundação de São Luís: 1613. A relação com os indígenas, seus diálogos, o preconceito europeu com a nudez ou o choque com a forma extraordinariamente diferente de os tupinambás lidarem com o dia a dia, com a vida como, por exemplo, a relação com os inimigos depois de finda a guerra.

Voltemos ao século 20. A coisa mais interessante do relato do livro em questão é que o sonho tem papel central na formação do xamã! Em que local ou país se imagina que o sonho, em nossa época, vai ter papel central na formação de um líder? 

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O relato de Kopenawa penetra fundo em suas visões, em sua relação com as entidades. Por exemplo, os ‘xapiri’ têm um papel central na sua formação de xamã. Os xapiri são entidades belamente descritas no livro, com luzes e cores extraordinárias, além dos cantos ‘heri’ ou as festas ‘reahu’. Ele fala também de sua formação através da inalação e uso do pó de ‘yãkoana’, um composto usado ancestralmente pelos seu povo. 

Aqui no Maranhão também temos povos indígenas, como os Guajajaras ou Canelas. Tenho defendido, dentro da Universidade Federal do Maranhão, há muitos anos, a criação de um curso de conhecimento ancestrais. Para preservar a identidade de nosso povo, dos brasileiros que moram nessa região. Termos cursos de graduação e pós graduação que garantam que esse conhecimento seja consolidado na sociedade.

Se não fomentarmos o conhecimento de nossos povos, nossa história, nossas terras, quem o fará? Que outra forma há de preservar o conhecimento ancestral, além da apropriação, pelo próprio povo, de sua herança?

Falei isso aqui neste espaço, mas gostaria de enfatizar: há mais de uma década, participei ativamente da criação do primeiro curso em rede em biotecnologia do Brasil: a Rede Nordeste de Biotecnologia (RENORBIO). Logo após, veio a Rede Norte (BIONORTE). Tinha dito que formamos quase mil doutores, mas um colega me corrigiu: “não, Allan, já temos em torno de 1.300 doutores formados nas duas redes!” 

O que significa isso? Que o chá de boldo, erva cidreira, quebra-pedra, casca de caju, pele de tilápia, e tantos conhecimentos ancestrais estão sendo preservados pela academia brasileira! Nossa região do Arco Norte produz muita Ciência, fazendo com que o povo brasileiro se aproprie do que é dele!

O professor Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é um dos maiores neurocientistas do Brasil e um dos mais respeitados no planeta sobre sonho e sono. Ele escreveu um livro, hoje traduzido em várias línguas, “O Oráculo da Noite”, em que ele aborda, com clareza cristalina, a importância do sonho em nossas vidas. Também aproveita para falar do quão importante eram os sonhos na formação das sociedades do planeta – qualquer delas!

Nesta hora é bom lembrar do simbolismo belíssimo do povo yanomami: a Amazônia apareceu exuberante com pássaros chilreando, árvores suando ou insetos voando, quando o céu caiu, formando a floresta – daí o nome “queda do céu”. Tenho a impressão que estamos em quadra histórica similar: o céu caiu no Arco Norte! Hora de aproveitar para plantar!

*Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.

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