BRASIL - Não é um caso isolado. Não é apenas sobre entregadores de aplicativos. A história de Nilton Ramon de Oliveira, de 24 anos, baleado por um cliente policial militar na terça-feira (4), na zona oeste do Rio de Janeiro, tem dimensões estruturais que remetem ao passado escravista brasileiro. Esse é o posicionamento de Leonardo Dias Alves, mestre em política social e professor da Universidade de Brasília (UnB).
Nas ciências sociais, a ideia de estrutura é frequentemente usada para falar de um fenômeno de longa duração. Por isso, apesar da abolição da escravidão no Brasil ter mais de 135 anos, o professor defende que alguns princípios que organizavam as relações raciais e trabalhistas da época escravista continuam no presente.
“O processo de exploração da força de trabalho do escravizado era baseada no controle e na violência. Com o advento da abolição, a violência continuou a ser algo central, com atributos que desumanizam a força de trabalho. E a população negra foi colocada à margem da sociedade, ocupando espaços racialmente discriminados no mercado de trabalho. Ela vai ocupar postos com menor remuneração, maior degradação humana, funções braçais e servis”, disse Leonardo.
“Quem são as pessoas que fazem trabalhos de limpeza? Quem são os que estão majoritariamente em trabalhos de entrega? Que fazem jornada gigantes? São essas pessoas que podem tomar um tiro, ser agredidas por aqueles que acham que podem tudo por estarem pagando. É uma violência voltada para a população negra, em um espaço de trabalho que é destinado à população negra. O racismo é tratado como algo moral, pessoal, comportamental. E nunca dimensionado enquanto uma estrutura. Todo o Estado e a sociedade deveriam ser cobrados e responsabilizados”, complementa o pesquisador.
O caminho para ter relações de trabalho justas e antirracistas passaria por uma transformação social profunda, com mudança de consciência coletiva, analisa Leonardo Dias. Mas, de forma imediata e específica sobre a situação dos entregadores, ele cobra atuação mais incisiva das plataformas digitais que os empregam, como o iFood.
“É necessário um trabalho reflexivo e crítico dessas plataformas. Se isso for do interesse delas também. Porque, pela lógica do capital e do lucro, será que é importante para elas que o trabalhador tenha segurança? A segurança de não sofrer racismo no ambiente de trabalho? Depois de uma jornada exaustiva, ter a possibilidade de morrer por conta disso? Há interesse em resolver e lidar com isso, estabelecer políticas antirracistas? Ou está tudo bem, porque morreu um, coloca mais dois que estão interessados no trabalho também?”, questiona o pesquisador.
Dados e iniciativas do iFood
A empresa iFood disse à Agência Brasil que tem uma central de apoio jurídico e psicológico para tratar casos de violência contra os entregadores. Em 2024, foram notificadas 13.576 denúncias de ameaça e agressão física à plataforma. Em 16% dos casos atendidos, os problemas aconteceram porque o cliente exigiu que os entregadores subissem nos apartamentos.
O Rio de Janeiro é considerado o lugar mais crítico, o que fez a empresa criar a primeira central física de atendimento para tratar casos como esses, na Vila da Penha, bairro da zona norte. Também foi lançada uma campanha específica, com o nome Bora Descer, para conscientizar as pessoas que elas têm que pegar o pedido.
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“A iniciativa recebe denúncias do Brasil todo. Existem áreas onde os problemas são maiores. No caso do Rio, com mais incidentes, isso pode acontecer pelo fato de ser uma cidade que enfrenta desafios socioeconômicos, como desigualdade de renda, falta de acesso aos serviços básicos, além de altos índices de violência urbana. E esses problemas podem se manifestar nas interações entre entregadores e clientes”, explica Dione Assis, fundadora da Black Sister in Law, coletivo de advogadas negras criminalistas responsável pela central de atendimento do iFood.
Dione Assis entende que existe uma naturalização das agressões e que, muitas vezes, elas são vistas como parte constituinte da atividade de entregador. A principal explicação para esses comportamentos, segundo ela, é o racismo.
“Há estudos que comprovam que os entregadores no Brasil são majoritariamente homens pretos e pardos. Isso é uma informação importante porque, no imaginário do cliente, necessariamente virá ao seu encontro uma pessoa com essas características. O que dá a ele a sensação de que pode agir assim, com determinadas exigências. E isso pode gerar uma situação de discriminação desses trabalhadores”, diz a advogada.
Direitos trabalhistas e sociais
O Ministério Público do Trabalho (MPT) disse estar atento aos episódios de agressão e humilhação contra os entregadores e destacou a existência de normas específicas que proíbem o racismo e outras formas de discriminação no ambiente de trabalho.
“Existem disposições constitucionais que vedam condutas discriminatórias contra os trabalhadores. Por exemplo, a Lei 9.029, que proíbe qualquer prática discriminatória e limitativa nas relações do trabalho. Para o MPT, as empresas que exploram esse tipo de atividade devem garantir que os trabalhadores não sofram qualquer tipo de discriminação e possam desenvolver suas atividades com segurança, para que não sofram nenhum dano nenhum ou agravo à saúde”, disse a procuradora do trabalho, Juliane Mombelli.
O MPT também reforçou que as empresas proprietárias dos aplicativos de entrega são responsáveis pela segurança dos trabalhadores e devem assumir a responsabilidade pelo cumprimento dos direitos deles.
“Essas plataformas digitais devem implementar medidas de proteção, independentemente do questionamento quanto à natureza jurídica dos vínculos que os trabalhadores têm com as empresas. Ou seja, é dever dos empregadores e das empresas proprietárias de plataformas monitorar e avaliar regularmente todos os riscos e impactos na rotina de trabalho”, afirma Juliane.
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