Através do Espelho
Através do Espelho (1993), de Jostein Gaarder, é uma obra que suscita uma importante discussão acerca de um tema metafísico muito delicado e complexo: a morte.
O escritor, filósofo e teólogo norueguês, Jostein Gaarder, nasceu em Oslo, em 1952. Durante dez anos, foi professor de filosofia, no ensino secundário. Em 1986, iniciou a sua carreira literária, com a publicação do livro O Pássaro Raro, e logo tornou-se uma grande referência para a literatura norueguesa. Em 1990, recebeu dois prêmios, em seu país, com o título O Dia do Curinga. Em 1991, ganhou projeção internacional, com o romance filosófico O mundo de Sofia, que foi traduzido para mais de cinquenta línguas e atingiu a marca de 30 milhões de exemplares vendidos.
Atualmente, Jostein Gaarder dedica-se, exclusivamente, à escrita literária. Dentre as suas produções, podemos destacar, ainda, obras como: Através do espelho (1993), Maya (1999), O Vendedor de Histórias (2001), O Castelo dos Pirenéus (2008), entre outras. Devido à sua formação acadêmica, o autor norueguês desenvolve, em seus livros, sobretudo temas filosóficos e existenciais, tais como o sentido da vida, a busca pelo conhecimento, a criação do mundo e os seus mistérios. Nesse sentido, em nosso ensaio, elegemos o romance Através do espelho (1993), por suscitar importantes discussões metafísicas, embora não tenha ganhado o patamar de best-seller, como O mundo de Sofia (1991). Logo, trata-se de um estudo pioneiro.
É importante ressaltar que o título original do livro de Gaarder, está em sueco, I et speil, i en gåte, e significa “Em um espelho, em um enigma”. A versão norte-americana, por sua vez, intitula-se Through a Glass, Darkly, isto é, “Através do espelho, obscuramente”. No Brasil, o romance ganha ainda outras duas traduções, O enigma e o espelho e Através do espelho, dentre as quais optamos pela segunda versão, por uma questão semântica: a expressão “através de” denota a ideia de atravessar de um ponto a outro, iniciar uma travessia/jornada através do espelho. Sentido esse que se adequa exatamente à narrativa, como veremos adiante.
Através do espelho (1993) é um romance relativamente curto, que conta com 141 páginas, e possui um narrador onisciente, que conta, em terceira pessoa, os acontecimentos e aventuras da protagonista, Cecília Skotbu – uma menina que sequer chegou à puberdade, mas já está dando os seus últimos suspiros. A obra ambienta-se na Noruega, mas especificamente na época do Natal. O tempo da narrativa ora é cronológico, tendo o feriado natalino como referência, ora é psicológico, sendo guiado pelos sentimentos e memórias da menina. Vale salientar que não há divisão de capítulos, o que proporciona um ritmo lento e contínuo ao romance.
Quanto aos personagens, pode-se notar que juntamente com Cecília, o anjo Ariel tem um papel de destaque na obra, sendo crucial para o seu desenvolvimento. Além disso, o romance conta com a participação, em segundo plano, da família Skotbu, composta pelos parentes mais próximos à criança, a saber, os avós maternos, os pais e o irmão caçula; dentre os quais, apenas a mãe e o menino são, respectivamente, nomeados de Tônia e Lars. Há também, uma pequena menção à outras duas personagens secundárias: a melhor amiga da protagonista, Marianne, e, a enfermeira, Christine.
É válido enfatizar que os nomes, ou a ausência deles, são essenciais para a construção de sentidos, em uma narrativa, pois constituem-se como símbolos. Enquanto a ausência de nome remete à uma ideia genérica, abrangente, e, desse modo, permite que o personagem represente todos, e qualquer um; o ato de denominar possibilita uma leitura prévia do texto, visto que cada nome, intrinsecamente, conta uma história. Cecília, por exemplo, provém do latim caecus, que significa cego. A cegueira era utilizada como símbolo da sabedoria, na mitologia grega, por isso a deusa da justiça, Themis, é representada com os olhos vendados ou cega, demonstrando, assim, a sua imparcialidade e prudência.
Cecília, portanto, é sinônimo de sabedoria, e, segundo Schopenhauer (2015) “a sabedoria não é senão a verdade” (p. 11). É necessário lembrar que essa não é a primeira personagem de Jostein Gaarder que simboliza a sabedoria, e, porque não dizer, a verdade: Sofia é um grande exemplo disso. Essa recorrência pode indicar uma representação maior, uma vez que a filosofia, proveniente do grego philos (amizade, amor, afeto) e sophia (conhecimento, sabedoria), significa “amor à sabedoria”. Aliás, o nome Ariel, que vem do hebraico Ari’el (אריאל), significando “leão de Deus “, é também um símbolo de sabedoria e poder. Na tradição cristã, é conhecido como um anjo que auxilia a recuperar objetos perdidos e a agradecer a Deus.
No que se refere ao enredo do romance Através do espelho (1993), inicialmente, em uma atmosfera natalina, somos apresentados à rotina de Cecília Skotbu, que devido ao seu frágil estado de saúde, permanece, a maior parte do tempo, em seu quarto. Por isso, seus passatempos se restringem a ler algum de seus livros favoritos (Bíblia, Contos dos deuses nórdicos ou o almanaque Ciência Ilustrada), escrever em seu diário chinês e observar sua coleção de cristais e pedras preciosas. Vale ressaltar que, em momento algum do livro, é mencionado o nome da doença que aflige a protagonista, entretanto, há indícios que se trata de câncer: a queda total do cabelo, como efeito colateral do uso excessivo de medicamentos, uma longa estadia no hospital e a morte prematura.
Como já foi mencionado, um nome traz à existência um ser, conta sua história e antecipa sua sina. E, esse pode ser, exatamente, o motivo do medo, que a família Skotbu, tinha em falar o nome da doença que Cecília possuía. Havia, simultaneamente, um sentimento de convicção e negação. Eles compreendiam que estavam vivendo seus últimos instantes com a menina, mas, apesar dessa certeza, tentavam não falar sobre esse assunto, segurando-se na remota possibilidade de cura. Cecília, sobretudo, fazia muitos planos para o futuro. Logo o Natal é celebrado: “Durante alguns dias as pessoas faziam exatamente as mesmas coisas que já tinham feito ano após ano, sem precisar pensar no motivo. 'É a tradição', diziam. E isso bastava” (GAARDER, 1993, p. 11).
Desse modo automático, transcorriam os dias da família Skotbu, vivendo dias iguais, concentrados, unicamente, no tratamento de Cecília. Entretanto, ocorre uma grande mudança na rotina da protagonista, quando ela conhece um novo amigo, Ariel, um “anjinho-criança”: “Só agora Cecília conseguiu ver seu rosto claramente. Era muito mais suave e puro do que a pele humana; também um pouco mais branco. Ela já estava começando a se acostumar com sua falta de cabelos na cabeça. Agora viu que ele também não tinha pálpebras nem sobrancelhas” (GAARDER, 1993, p. 35).
Desde a epígrafe do romance, podemos notar que a narrativa se desenvolve a partir do texto bíblico de 1 Coríntios 13,12, “Pois agora enxergamos num espelho, num enigma; um dia, porém, veremos face a face”. Por isso, a todo instante, Ariel faz uma alusão a essa passagem, através de metáforas tais como, “Você poderia ter adivinhado isso sozinha. Mas vocês, seres humanos, compreendem as coisas só em parte. Vocês enxergam tudo num espelho, num enigma” (GAARDER, 1993, p. 30). Isso condiz com o pensamento de Schopenhauer (2015, p. 05): “não conhecemos a nós próprios ou as coisas como são nelas mesmas, mas somente como aparecem”.
Nesse sentido, tanto em Gaarder, quanto em Schopenhauer, existe uma barreira que ofusca a nossa visão, a saber, o espelho e o Véu de Maia, respectivamente, que representam uma incógnita, uma miragem. Dessa maneira, existem vários enigmas que passamos a vida inteira tentando resolver. Essa ânsia pelo conhecimento é delineada, ao longo da narrativa, mediante as conversas de Ariel e Cecília sobre “os mistérios do céu e da terra”. É perceptível que a curiosidade do anjo sobre a criação divina é genuína, entretanto, é também uma forma de iniciar, paulatinamente, um interessante diálogo, que resultará em uma reflexão profunda acerca da vida e do transcendente.
As perguntas de Ariel são relacionadas aos mínimos detalhes e sensações do corpo humano, como, por exemplo, os cinco sentidos, como é escutar um som, lembrar de um sabor, sentir a neve na palma das mãos, falar sem pensar e, simplesmente, ver o mundo ao seu redor? Em meio ao cotidiano, e suas necessidades monótonas, não temos tempo para refletir sobre essas questões. São indagações aparentemente triviais, mas que resultam em um grande tributo à vida. Diante disso, a menina exclamou: “Gostaria de já ter pensado mais em tudo isso, em como é viver”. “Nunca é tarde para começar” (GAARDER, 1993, p. 75), foi a resposta do anjo. Isso porque, de acordo com Schopenhauer (2014),
Do mesmo modo que o rio corre manso e sereno, enquanto não encontra obstáculos que se oponham à sua marcha, assim corre a vida do homem quando nada se lhe opõe à vontade. Vivemos inconscientes e desatentos: nossa atenção desperta no mesmo instante em que nossa vontade encontra um obstáculo e choca-se contra ele. Sentimos ato contínuo tudo o que se ergue contra a nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste: ou o que é mesmo, tudo o que nos é penoso e desagradável (p. 07).
Em outras palavras, é necessário que algo aconteça para nos despertar do transe cotidiano. Cecília representa, portanto, o ser humano de um modo geral, que percebe e valoriza somente aquilo que lhe escapa das mãos. Todavia, a arte toma o caminho contrário e promove um despertamento, para tudo que antes ignorávamos. Por isso, livros como Através do espelho (1993) são leituras essenciais. Após algum tempo, Ariel convida Cecília para sair de casa e observar os últimos dias do inverno. Devidamente agasalhada, a menina sobe uma colina e contempla a paisagem, a neve, o céu estrelado, meditando nas palavras do anjo. Logo, é operada uma alteração no humor e percepção de Cecília, pois,
A natureza, ao apresentar-se de um só golpe ao nosso olhar, quase sempre consegue nos arrancar, embora apenas por instantes, à subjetividade, [...] colocando-nos no estado de puro conhecimento. Com isso, quem é atormentado por paixões, ou necessidades e preocupações, torna-se, mediante um único e livre olhar na natureza, subitamente aliviado, sereno, reconfortado. [...] Tal libertação do conhecimento eleva-nos tão completamente sobre tudo isso quanto o sono e o sonho. Felicidade e infelicidade desaparecem. Não somos mais indivíduo, este foi esquecido, mas puro sujeito do conhecimento. Existimos tão-somente como olho cósmico UNO, que olha a partir de todo ser que conhece, porém só no homem tem a capacidade de tornar-se tão inteiramente livre do serviço da Vontade (SCHOPENHAUER, 2005, p. 268-269, grifo do autor).
Em síntese, Schopenhauer (2005) deduz que a “grandeza infinita do mundo no espaço e no tempo” ou a visão do “céu noturno estrelado, tendo inumeráveis mundos efetivamente diante dos olhos”, nos proporciona uma meditação, que impõe a “incomensurabilidade do cosmo”. Nesse momento sublime, “sentimo-nos como indivíduo, como corpo vivo, como fenômeno transitório da Vontade, uma gota no oceano, condenados a desaparecer, a dissolvermo-nos no nada” (p. 278). Em consequência disso, notamos um paradoxo: essa grandeza incomensurável não nos oprime, mas nos eleva, pois “somos unos com o mundo”. Cecília teve, então, um momento de sintonia com a natureza, que originou um sentimento reconfortante de alívio.
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Após esse momento de conforto, finalmente Ariel exclama: “Temos de falar sobre a sua alma, Cecília” (GAARDER, 1993, p. 87). Logo, o anjo explica que do mesmo modo que a lua está para sol, o ser humano está para Deus, pois “o que seria de você sem o sol, e o que seria do sol sem Deus?” (GAARDER, 1993, p. 107). Há, portanto, uma intrínseca relação de espelhamento. O céu, a terra, o sol, a lua, e próprio ser humano, nada mais são do que espelhos, reflexos divinos da eternidade. “Mas, num espelho celestial, até as coisas mais terrenas se tornam celestiais” (GAARDER, 1993, p. 134), por isso, até mesmo o nome do rio, que corria embaixo da ponte sobre a qual Cecília e o anjo estavam, continha um espelhamento: chamava-se Leira, Ariel, ao contrário.
Assim, a protagonista descobre o enigma do espelho, e, despede-se de sua família. Por fim, Ariel a auxilia a concluir sua jornada através do espelho da vida-morte, rumo à eternidade. “Nascimento e morte são condições da vida, e se equilibram, formando os dois polos, as duas extremidades da existência, e ao seu redor giram todas as suas manifestações”, como diria Schopenhauer (2014, p. 01), pois esse “é o maior jogo de dados que conhecemos; ansiosos, interessados, agitados assistimos a cada partida, porque a nossos olhos tudo se resume nisso” (p. 02).
Portanto, Através do espelho (1993), de Jostein Gaarder, é uma obra que suscita uma importante discussão acerca de um tema metafísico muito delicado e complexo: a morte. Entretanto, o autor utiliza a metáfora do espelho de forma leve, com uma linguagem simples. Fala sobre a morte, partindo da vida. É, pois, um grande tributo à existência e seus enigmas.
Diante disso, é possível “comparar a vida a um tecido bordado, do qual cada um veria, na primeira metade de sua existência, o direito, mas na segunda, o avesso. Este não é tão belo, todavia é mais instrutivo, já que permite reconhecer o entrelaçamento dos fios” (SCHOPENHAUER, 2002, p. 254), assim, Cecília decifrou seu enigma quando, enfim, atravessou o espelho.
REFERÊNCIAS:
GAARDER, Jostein. Através do espelho [1993]. São Paulo: Cia das Letras, 2017.
______________. Maya [1999]. 1 ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.
______________. O Castelo dos Pirenéus [2008]. 1 ed. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2010.
______________. O Dia do Curinga [1990]. 1 ed. São Paulo: Seguinte, 1996.
______________. O mundo de Sofia [1991]. 1 ed. Rio de Janeiro: Seguinte, 2012.
______________. O Pássaro Raro [1986]. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
______________. O Vendedor de Histórias [2001]. 1 ed. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2004.
SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002.
______________. Dores do mundo. Disponível em: <https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2015/01/Dores-do-Mundo.pdf>. Acesso: 04/09/24.
______________. Esboço de uma história da doutrina do ideal e do real. Disponível em: <https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2015/01/Esbo%C3%A7o-de-uma-Hist%C3%B3ria-da-Doutrina-do-Ideal-e-do-Real.pdf>. Acesso em: 04/09/24.
______________. O mundo como vontade e representação, 1° tomo [tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza]. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
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