COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
GABRIELA LAGES VELOSO

A individuação feminina

Reproduzo aqui o texto da jornalista e poeta Laura Redfern Navarro acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).

Gabriela Lages Veloso

Atualizada em 01/08/2024 às 16h04
Ilustração: Bruna Lages Veloso

Partindo dos signos universais do mar e do espelho, O mar de vidro (2023), de Gabriela Lages Veloso, à primeira vista, pode soar melancólico. A leitura, porém, destaca-se por sua carga visceral e por sua densidade poética, que se centra no processo de individuação do sujeito. Isso já se observa pelo título, cuja sonoridade e escolha de palavras são muito similares ao título da cantiga medieval de Martín Codax (que data, aproximadamente, do século XII), Ondas do mar de Vigo, que traz uma visão ambígua do mar:  

Ondas do mar de Vigo,

porventura vistes meu amigo?

Ai Deus! Ele voltará logo?
Ondas do mar conturbado,

porventura vistes meu amado?

Ai Deus! Ele voltará logo?

Porventura vistes meu amigo,

por quem tanto suspiro?

Ai Deus! Ele voltará logo?

Porventura vistes meu amado,

por quem tenho tanto cuidado?

Ai Deus! Ele voltará logo?

No poema, a água representa tanto o obstáculo para o encontro do eu lírico com seu amado (“Ondas do mar de Vigo/ porventura vistes meu amigo?”), quanto uma figura confidente, a quem ele pode desvelar a própria subjetividade (“por quem tanto suspiro!” e “por quem tenho tanto cuidado?”), o que se verifica pelo emprego da primeira pessoa. 

A poética contemporânea de Gabriela Lages Veloso também abraça ambas as possibilidades em torno do mar — seja como obstáculo entre o “eu” e o “outro”, seja como um caminho profundo de autoconhecimento. Daí, portanto, a dualidade com o espelho, representado culturalmente como ferramenta intrapsíquica, que proporciona o impedimento da relação com o outro (no caso do narcisismo).

Toda a construção de O mar de vidro (2023) parece seguir também um processo de individuação do eu lírico, que se nota pelos nomes e pela ordem das três seções de poemas do livro: “Gaia”, “Vênus” e “Atena” — todos referentes às divindades greco-romanas e às qualidades arquetípicas associadas ao feminino. Nesse sentido, “Gaia” representa fertilidade, abundância e maternidade; “Vênus” traz consigo a beleza, o romantismo e a paixão; e “Atena”, por fim, chama a atenção para o intelecto, para o autoconhecimento e para a evolução. 

Portanto, Veloso, de forma engenhosa e sensível, trabalha os temas centrais — mar e espelho, interno e externo, o Eu e o Outro — a partir da perspectiva e das qualidades das divindades de cada seção. Isto se observa já em um dos primeiros poemas do livro, que integra “Gaia”: 

A água

Carrego a vida em minhas moléculas.
Assumo os mais diversos estados
mas, em todos eles,
tenho o poder de regenerar.

Sou mãe de todos os seres vivos.
Às vezes, me faço tranquila.
Doce remanso.
Às vezes, sou intempestiva.

Fúria dos mares.

Em todas as minhas formas,
cuido e sustento a vida.
Tudo o que peço é reciprocidade.

(Veloso, 2023, p. 17).

Nesse poema, o que vemos é um eu lírico afirmativo acerca tanto de sua substância (“Carrego a vida em minhas moléculas”) quanto de sua impermanência (“Às vezes, me faço tranquila”, “Às vezes, sou intempestiva”), fechando com a lembrança de seu amor como mãe (“Em todas as minhas formas,/ cuido e sustento a vida./ Tudo o que peço é reciprocidade”). 

Ou seja, o poema une a presença cuidadora de Gaia à sua relação consigo mesma e com o mundo. Para isso, Veloso parte essencialmente da imagem poética da água — que é definida pelo filósofo francês Gaston Bachelard (1989) enquanto impermanência e profundidade, estando relacionada, desse modo, a tudo aquilo que habita o inconsciente. 

Podemos dizer, então, que sua capacidade de assumir formas diferentes, de regenerar, ou, até mesmo, de ser criadora de todos os seres vivos, indica uma imersão ao próprio inconsciente, ao próprio sonho, que seria “capaz de conceber e dissolver o mundo na ponta dos dedos” (Bachelard, 1989). 

Dessa maneira, o eu lírico investiga e expõe sua realidade interna (ainda que por meio de características conflituosas) ao mundo, com o único desejo de receber sentimentos recíprocos. Trata-se, portanto, do processo de concepção do Eu e de sua capacidade de existir, o que se dá somente pela confirmação do Outro. 

Essa faceta do Outro — que se faz ambígua entre obstáculo e individuação — torna-se mais explícita nos poemas da seção “Vênus”, que se dirigem mais ao objeto externo (seja ele algo a ser observado ou um elemento vocativo). Isso se observa no poema que dá título à obra:

O Mar de Vidro

Em tua fria e funda lâmina, 

encontram-se mistérios 

escondidos, o medo do 

confronto com verdades 

ocultas, ou, quem sabe de, 

simplesmente, perder-se. 

 

Tua dura água reflete 

e encanta os Narcisos,

levando-os ao eterno 

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descontentamento.

 

Teu lume frio revela 

a fera interior que, em 

vão, tenta-se esconder. 

 

Espelho, és o poço mais 

profundo que existe.

 

Em uma só mirada 

atravessas as barreiras 

do tempo e da vida. 

 

Mágico, sombrio ou 

verdadeiro, apenas,

és um mar de vidro.

(Veloso, 2023, p. 36)

Nesse poema, o eu lírico parte de um olhar observador e descritivo em torno de um objeto que logo se revela tratar-se de um espelho. Porém, o tom fleumático do texto (elemento que, aliás, se destaca) abre-se também a uma leitura quase fantástica, que concebe uma metamorfose entre o espelho e o mar. 

Paradoxalmente, como já mencionado, os significados atribuídos culturalmente ao mar e ao espelho, muitas vezes, são indicativos do sujeito e de sua psique. Na cantiga medieval de Codax, porém, o mar é concebido também enquanto um impedimento, tal como o espelho, que pode ser um signo narcísico. A reunião desses elementos e seus significados é abordada, notoriamente, no mito de Narciso, que se apaixona pela própria imagem refletida na água, tendo, assim, o afogamento e a morte como desfecho. 

O poema “O Mar de Vidro” parece se apropriar das mitologias citadas acima, produzindo um significado novo ao mar e, assim, à própria subjetividade. Entretanto, essa visão se apresenta de maneira conflituosa e contraditória, já que é um caminho profundo à individuação (“Em uma só mirada/ atravessas as barreiras/ do tempo e da vida”) mas também uma fuga desse processo, como retratado de forma cirúrgica na segunda estrofe. Assim, Veloso nos mostra, nesse poema, que o sofrimento faz parte da jornada de autoconhecimento — afinal, estamos diante da nossa própria profundidade, como um reflexo estático das águas, brilhantemente representados na imagem do “mar de vidro”. 

Em “Atena”, última seção de poemas da obra, há uma verve mais ensaística, que já não se direciona apenas ao mundo interno nem ao objeto externo, mas caminha em torno de uma síntese entre os dois elementos. O poema “Solitude” é um bom exemplo:

Solitude

Nas folhas caídas, ao vento,
nos sons do silêncio,
na mutabilidade dos dias,
perceberás a ti mesmo.

Nas tempestades em alto-mar,

no barulho desordenado da cidade.
na solitude da multidão,
aí, sim, encontrarás o teu eu.

Perceber e encontrar a si mesmo
é um dom. Mas, enxergar o outro
como o seu próprio reflexo é
compreender o enigma da vida.

(Veloso, 2023, p. 53).

O eu lírico inicia o texto colocando a importância do mundano, do intempestivo e do silencioso na jornada rumo ao autoconhecimento — o que se revela como um paradoxo, tal como se pode observar nos seguintes versos: “na solitude da multidão,/ aí, sim, encontrarás o teu eu”. 

Assim, apesar de não figurarem como protagonistas os elementos do mar e do espelho, ainda formam a tessitura que liga a construção do processo de individuação que se observa nas seções “Gaia” e “Vênus”, agora apresentando uma conclusão: “Perceber e encontrar a si mesmo/ é um dom. Mas, enxergar o outro/ como o seu próprio reflexo é/ compreender o enigma da vida”. 

A partir dessa análise, podemos dizer que O mar de vidro (2023), de Gabriela Lages Veloso, é uma obra que caminha em torno da ideia do “conheça-te a ti mesmo”, que se desdobra de modo singular no entrecruzamento do inconsciente coletivo ocidental (que engloba elementos, objetos, divindades e mitologias), com uma proposição filosófica.


REFERÊNCIAS:

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: McGraw-Hill, 1989.

CODAX, Martin. Ondas do mar de Vigo. Tradução de Josemar Rodrigues. Disponível em:<https://lyricstranslate.com/pt-br/«ondas-do-mar-de-vigo»-ondas-do-mar-de-vigo.html>. Acesso em: 03/03/2024.

VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023. Disponível para venda no site: <https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/o-mar-de-vidro/>.

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SOBRE A ENSAÍSTA: Laura Redfern Navarro é poeta e jornalista graduada pela Faculdade Cásper Líbero. Desde 2019, produz conteúdo sobre literatura e criatividade na plataforma @matryoshkabooks. Pesquisa corpo e linguagem nas vicissitudes do feminino. Foi aluna do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE-Poesia), em 2021. Participa da equipe de poetas do portal FaziaPoesia. Em 2022, venceu, em primeiro lugar, o Edital de Publicação Inédita em Poesia do ProAC com O Corpo de Laura.

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