A Poesia no Espelho
Reproduzo aqui o texto da escritora e poeta Margarida Montejano acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).
Cara leitora, caro leitor, se você ainda não teve a oportunidade de acessar o conteúdo do livro O mar de vidro (Caravana, 2023), de Gabriela Lages Veloso, não se demore! Se você já fez a leitura, haverá de concordar comigo. O livro é um belo convite a um mergulho poético-reflexivo. Trata-se de uma seleção de poemas, pérolas raras, forjadas no envolvimento da autora com a literatura durante o seu processo formativo entre 2021 e 2022. O mar de vidro é dividido em três partes: Gaia, Vênus e Atena, numa perspectiva ancestral, que dá o tom ao livro.
Reunindo poemas que abordam o feminino com leveza e profundidade, a autora valoriza a mulher e a complexidade de sua existência num mundo marcado por interesses do patriarcado. Com reflexões sobre a vida, o tempo e a arte, as faces do espelho d’O mar de vidro se misturam e os poemas, com inteligentes metáforas, nos provocam e nos convidam a percorrer caminhos por entre labirínticos versos, a pensar formas de sair da caverna.
Embevecida com os poemas, e de uma forma também metafórica, apresento como se deu a minha imersão neste livro. Li e reli as páginas de O mar de vidro viajando por elas, ou melhor dizendo, mergulhando nelas. Eu lhe convido a vir comigo neste mergulho e aviso, de antemão, que escrevo em primeira pessoa, e no tempo presente, porque ainda viajo nesse livro.
“Certa vez foi dito que/ precisamos sair da/ ilha para vê-la,/ em sua plenitude” (Veloso, 2023, p. 29). Já estava com a leitura avançada no livro de poesia O mar de vidro, quando me deparei com essa paráfrase da máxima de José Saramago, descrita no poema “A ilha de pedra”, da escritora e poeta Gabriela Lages Veloso. Pensando no conteúdo dos versos do poema, respirei fundo, peguei meus equipamentos de leitura – óculos e lápis, subi à tona e mergulhei novamente no espelho desse mar de vidro. Isso mesmo. Retornei às primeiras páginas do livro, pois ele, tal qual a ilha, me convocava a vê-lo na sua inteireza e a ver-me nas palavras e versos.
Equipada, mergulho. Meio anestesiada pelo impacto das águas do mar de palavras à minha frente, vou tecendo a leitura como se estivesse nadando em câmera lenta e, enquanto me tocam os primeiros poemas, enxergo as letras compondo palavras, formando frases e sentidos em minha cabeça. Preciso apertar os olhos para ler e reler os versos que me puxam para dentro de si. Sim. Eles parecem ter vida própria no poema “O Mar de Vidro” (p. 36). E têm, como é possível notar no trecho abaixo:
Em tua fria e funda lâmina,
encontram-se mistérios
escondidos, o medo do
confronto com verdades
ocultas, ou, quem sabe de,
simplesmente, perder-se. [...]
Eu avanço mais e mais nas páginas do livro e, em redemoinho, percebo-me girando, girando entre os poemas e, neste rodopio, sinto “Gaia” soprando em meus ouvidos: “A cada volta, um novo ciclo./ Estou presa nas areias do tempo” (Veloso, 2023, p.15). A areia, o espelho, o mar… Como havia prendido a respiração quando mergulhei, já não era mais possível segurá-la. Entre um verso e outro, respirar é urgente. Nesta interação leitora-escritora, fiz dos versos da poeta meus pensamentos: “E se um dia eu esquecer as palavras?” (p. 16), não, impossível! “Às vezes, sou intempestiva” (p.17). Quase sempre sou.
Assim me senti com o livro na mão. Entre tempestades de ideias, de sonhos e de devaneios, o mar de Gabriela, como uma série de espelhos, me desafia a viajar pelas imagens ancestrais que me habitam desde a eternidade. No poema vejo meu reflexo misturado à imagem de Narciso inebriado e apaixonado a olhar-se nas águas. Meus olhos também se inebriam quando leio:
Tua dura água reflete
e encanta os Narcisos,
levando-os ao eterno
descontentamento.
Teu lume frio revela
a fera interior que, em
vão, tenta-se esconder. [...]
(Veloso, 2023, p. 36).
De espelho em espelho, sigo como se em um labirinto de espelhos estivesse. A razão me puxa pelas mãos e me diz que é preciso sair da escuridão, das profundezas e avançar em direção à luz. Mar, mar, mar... balanço-me no eco do encontro das águas com o vento. Mais uma vez o poema ousado me lembra que “Na superfície, tudo que/ podemos enxergar é um/ espelho perturbado pelas/ ondas” e que, “quem atravessa tuas águas, mesmo que somente com o olhar, sente a difícil liberdade de retornar ao porto.” (Veloso, 2023, p. 18). E agora? Quero ou não quero retornar? Vejo em camadas o espelho e, no meu pensamento raso, já não sei o que fazer. O poema, naquele momento me esclarece, me embevece e me mostra este objeto encantado, tal como é:
Espelho, és o poço mais
profundo que existe.
Em uma só mirada
atravessas as barreiras
do tempo e da vida.
Continua após a publicidade..
Mágico, sombrio ou
verdadeiro, apenas,
és um mar de vidro.
(Veloso, 2023, p. 36).
Volto com sofreguidão à superfície. Respiro a cada verso e inspiro a cada sentido impregnado nas palavras. Sinto-me agora encorajada a olhar-me no espelho para além do reflexo e vejo que sou parte das mulheres que vieram antes de mim. O poema me remete ao livro Mulheres que correm com lobos, de Clarissa Pinkola Estés, que sobre isso me lembra: “Às vezes mergulhamos, saímos, mergulhamos de novo, rapidamente”, mas “[…] não podemos ficar debaixo d’água para sempre, mas precisamos voltar à superfície” (Estés, 1994, p. 362-363).
Uma responsabilidade ancestral, de sobressalto, me toma quando me deparo com os versos a perguntar: “Macabéa, até quando aceitarás/ o destino que te impuseram?/ Até quando permanecerás invisível?” (Veloso, 2023, p. 46). Neste momento meu pensamento vagueia pelas palavras e a poeta atenta me diz: “Escrevo para que tudo/ que minhas ancestrais/ viveram não seja apagado.” (p. 47). Sentimentos de dor, saudade e medo agora me invadem, me fazem voltar às páginas do livro e enquanto releio os poemas, outras questões me auxiliam a decifrar as imagens que “Macabéa” me trouxe: “[…] Contra quem lutamos?/ O que queremos?” (p. 23).
Sigo a leitura em um vai e vem das páginas e, na sequência, encontro suposições: “Rastros. Rostos. Restos” (Veloso, 2023, p. 24), “o esgoto/ segue seu caminho para/ o mar” (p. 26-27). Questiono-me: será que este espelho está me mostrando a face corrupta do patriarcado a sobrepujar o feminino na história? A resposta vem rapidamente à cabeça: sim, lutamos contra o patriarcado, contra o machismo, e o cotidiano forjado na ótica masculina, embasada na ideia da força física e do “sexo forte” que assola, arrasa e silencia a mente e o corpo feminino.
Sim. Grifo, e ressalto a mim mesma, que a sistematização dessas ações resultou no apagamento da voz e da participação feminina na perspectiva sociopolítica da história, dando consistência ao conhecimento do senso comum que naturaliza a desigualdade de gênero, bem como classifica o papel social da mulher como secundário e restrito aos cuidados domésticos.
Vejo a mulher nas fases da lua e nas duras lutas cotidianas desbravando espaços em defesa da vida, do corpo e da mente. Em contraposição, a morte acenando a ela como punição por ser ela mulher, por pensar, por ser e ver diferente, por falar o que sente e por existir. As palavras gritam em meu pensamento me orientando que é preciso ler os silêncios produzidos numa cultura cuja lógica hegemônica era, e é, masculina. Neste momento de turbulência mental formam-se, diante de mim, “Várias imagens simultâneas” e a poeta me diz: “O silêncio é caleidoscópico” (Veloso, 2023, p. 42). Acerca disso, Priscila Tamis (2022), me auxilia a ver e a refletir, também em primeira pessoa:
Corpos de memória, corpos de alteridade, feridas coloniais, migrações forçadas, inacessibilidades, rasgamos o tempo e nossas cicatrizes, nossos medos, nossas diferenças de dentro e entre nós. Pelas águas que trouxeram nossas irmãs, no salgado da memória de nossas ancestrais, pelas desigualdades de oportunidades, pelo tom amargo de necessidade de afirmação em tempos de ódio explícito à mulher, pelo doce e poderoso vigor de nossas entranhas, recuo à esquerda, escrevo em primeira pessoa. Ela escreve, e ela, e ela também… e… (p. 123).
Frente a esse mar de imagens, sento-me na areia do tempo e penso nos silenciamentos a que elas foram (e que, ainda hoje, somos) submetidas. Penso na morte e vida severina de Marias e Marielles que clamam para que continuemos a marcha denunciadora do apagamento de nossa voz na história. Por mais que queiram, não conseguiram e não conseguem, pela nossa presença viva no mundo, subtrair das entrelinhas as marcas e as manchas do sangue, suor e lágrimas de tantas outras mulheres que nos antecederam. Entre o ir e o vir das páginas do livro, sinto a voz ancestral ressurgir: “Hoje falo em nome de/ todas as mulheres do/ passado, presente e futuro” (Veloso, 2023, p. 47).
Penso nos homens em guerra, no feminicídio e infanticídio, nos gabinetes do ódio, na vida e outro poema me socorre, dizendo: “nos ciclos sem fim de Gaia,/ a raça humana vaga novamente, na/ eterna busca por algo inominado,/ perdida em suas pegadas na areia” (Veloso, 2023, p. 31). Um novo espelho ressurge diante de mim. O poema “Vênus” me dá a mão e me reacende a esperança - “Talvez, em um futuro distante,/ alguém compreenda que/ a beleza é um espelho de muitas faces” (p. 35).
Reflito sobre isso e vou construindo a ideia de que somos “reflexo da luz estrelar. Espelho solar” (Veloso, 2023, p. 37). Contudo, não tenho ainda clareza sobre isso. Deixo suspensa a dúvida e, na leitura, os poemas me recomendam a seguir viagem. Informam-me que, na transitoriedade da vida, somos passageiras e passageiros deste mundo, “que existe um universo/ além de nós” (p. 65). Que “atravessar desertos exige coragem./ Às vezes, é preciso deslocar a rota/ para encontrar o caminho” (p. 60). Atena, pela poesia, revela que é preciso sabedoria para ver “a terceira margem” (p. 43).
Olho de novo o espelho e vejo o mar revolto. O que será de mim? Das mulheres que vivem em mim e fora de mim? A outra, as outras? O que será da humanidade marcada por tanta desigualdade? Giro, rodopio, danço uma valsa, um tango, uma ciranda. Zonza, vejo no espelho imagens embaçadas provocadas pelas trevas do tempo presente e Gabriela vem e me diz que é preciso ter coragem, pois, apesar de tanto tempo ter se passado, “ainda temos/ medo de sair da caverna” (Veloso, 2023, p. 62).
Fecho o livro O mar de vidro e as últimas palavras que leio, permanecem em minha mente, como uma tatuagem. Sim. Tatuadas em mim para que eu não me esqueça de que “a arte –/ em cada nota, tinta ou/ letra, salva vidas” (Veloso, 2023, p. 64). Preciso entender o todo e a parte. O livro continua aberto em mim. Penso na arte. Resiliente, não desisto. Recorro a duas outras ‘formas de ver a arte’ descritas por escritoras contemporâneas, na tentativa de entender o que a poeta afirma em seus versos. Amanda Lovelace, na obra A bruxa não vai para a fogueira neste livro, elege a poesia como chave. Segundo ela, “a poesia será o que nos levará a essa revolução, […] será o que nos trará cuidadosamente de volta [...] a resistência é uma arte” (2018, p. 173). Será que entendi? Preciso pensar.
Katiuce Lopes Justino, em seu livro Mancha Gráfica (2023) me socorre e me informa que a arte é pedagógica. Me apresenta seus versos, propositadamente sem pontuação, para que eu compreenda que “a arte ensina a ver a ouvir a desver ensina existir engolir um pedaço grosso de pão” (Justino, 2023, p. 72). Uma coisa ficou clara. Preciso aprender a desver, a buscar as outras faces que não foquei ou que, por descuido talvez, não atentei o meu olhar. Concluo o óbvio. Sim, a poesia me desafia a entendê-la como instrumento, ferramenta, extensão de mim, extensão de nós. Sobre isso e no diálogo com as autoras nestas reflexões, penso em Atena, em Gaia, em Vênus. Penso nas imagens de Narciso, das refletidas nas paredes da Caverna de Platão, na de Macabéa e na minha própria.
Penso no silêncio e no “bordado/ de silêncios” (Veloso, 2023, p. 52), que tece a poesia. Penso na escritora e poeta Gabriela Lages Veloso que, em seu livro O mar de vidro (2023), nos ajuda, com a beleza e profundidade de seus versos, a entender que não temos caminhos fixos. Somos, mulheres e homens, seres de esperança e caleidoscópios à procura de luz. Com a arte e a magia das deusas, a autora nos encanta e nos convida a construir um outro tempo, no qual a igualdade de gênero seja o que nos une e que nos dá coragem para que possamos, juntas e juntos, sair da caverna.
REFERÊNCIAS:
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
JUSTINO, Katiuce Lopes. Mancha Gráfica. Ilustração: Jessica Iancoski. Curitiba: Eu-i, 2023.
LOVELACE, Amanda. A bruxa não vai para a fogueira neste livro. Tradução Izabel Alexo. São Paulo: LEYA, 2018.
TAMIS, Priscila. Ensaios de um belo surto: o que contam as memórias, saúde e experiências de um corpo? Piracicaba: Editora da autora, 2022.
VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023.
***
SOBRE A ENSAÍSTA: Margarida Montejano é natural de Mogi Guaçu (SP), mas reside em Paulínia (SP). É doutora em Educação (Unicamp). Servidora Pública Municipal em Campinas. Poeta, escritora, produtora do Canal Literário – N’outras Palavras (no Youtube). Coorganizadora do livro Cotidiano, Poesia e Resistência, pela Editora Siano. Autora dos livros Fio de Prata (2ª ed. Editora Siano), Chão Ancestral (TAUP Editora, 2023) e Pérolas do Caminho, disponível na Amazon (Kindle). Participa das coletâneas literárias Enluaradas; do Selo OFFFLIP, Poéticas Contemporâneas: uma cartografia da escrita de mulheres, dentre outras.
***
O mar de vidro está disponível para venda no site da Caravana Grupo Editorial:
https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/o-mar-de-vidro/
Saiba Mais
As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.
Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.
+Namira