COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Morro do Isolamento

Publicado pela primeira vez em 1944, Morro do Isolamento, de Rubem Braga, é um livro de crônicas atemporal.

Gabriela Lages Veloso

Rubem Braga é considerado o mestre da crônica do Brasil. Nascido em 1913, em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, ingressou precocemente no jornalismo, em 1928, no Correio do Sul, fundado por seus irmãos. Apesar de ser formado em Direito, nunca exerceu a profissão e dedicou-se por toda a vida ao jornalismo e à crônica, trabalhando em diversos jornais brasileiros. Atuou também como embaixador no Marrocos, chefe do Escritório Comercial do Brasil no Chile, bem como foi correspondente do Diário Carioca, durante a Segunda Guerra Mundial. 

Ilustração: Bruna Lages Veloso

Além disso, foi contista e poeta. Todas essas experiências influenciaram fortemente as suas crônicas. Publicou seu primeiro livro, O conde e o passarinho, em 1936. A este se seguiram diversos outros títulos que lhe garantiram prestígio incomum junto ao público leitor e à crítica ao longo das últimas décadas. Após muitas viagens e residências, Rubem Braga instalou-se definitivamente no Rio de Janeiro, e sua casa se tornou um famoso ponto de encontro da intelectualidade carioca. O autor faleceu em 1990 e suas cinzas foram jogadas no rio Itapemirim.

Publicado pela primeira vez em 1944, Morro do Isolamento, de Rubem Braga, é um livro de crônicas atemporal. Em 2018, a Global Editora lançou a sétima edição da obra, que foi coordenada pelo crítico literário e ensaísta André Seffrin. A dedicatória do livro Morro do Isolamento, de Rubem Braga, é o que primeiro chama a atenção do/a leitor/a, pois apesar de ter sido escrita em 1944, infelizmente permanece muito atual: “como andamos em tempo de guerra quero fazer uma dedicatória contra. [...] Atinja, aqui e ali, todos que, no claro ou escuro, trabalham mesquinhamente contra o amanhã [...] aos que separam os homens pela raça e pelos privilégios” (Braga, 2018, p. 09).

Morro do Isolamento (2018) reúne 20 crônicas de Rubem Braga que abordam de forma crítica, sarcástica — e, por vezes, cômica — temas como a contradição humana, a desigualdade social e de gênero, a fome, a miséria, a injustiça, a dureza da guerra, a morte e a vida, a poluição e as mudanças climáticas. A linguagem de Rubem Braga carrega a ironia machadiana e pinta um retrato fiel do ambiente urbano, que infelizmente não teve mudanças drásticas (mesmo após 80 anos), e esse fato põe as crônicas em movimento e faz com que nunca percam a sua atualidade. Vamos às narrativas.

Na crônica Carnaval, o protagonista, após uma longa festa, repleta de drogas, brigas sem motivo e paixões efêmeras, se depara com um “menino sujo e esfarrapado [que] dormia. Dormia sob um saco de estopa cheio de serpentinas que juntara para vender. [...] Sentiu pena” (Braga, 2018, p. 18). Ao ver o menino, o homem refletiu sobre si mesmo. Enquanto festejava, outros lutavam para sobreviver. Por outro lado, em Palmiskaski, “havia um guarda-civil que não tinha nada que fazer. [...] Que vida mais triste [...] Finalmente aconteceu uma coisa, uma coisa sem importância. Aconteceu um mendigo. [...] Prendeu. [...] Os guardas-civis devem prender todo dia pelo menos um mendigo” (Braga, 2018, p. 20). 

Assim, sem nenhum motivo, o mendigo Miguel Palmiskaski foi preso e após sair da cadeia teve de depender da “caridade pública”, de pessoas tão preconceituosas quanto quem o prendera. No Almoço mineiro o narrador-personagem fala com afeto do “encanto de Minas”. Já na crônica que dá nome ao livro, Morro do Isolamento, um profeta chora, pois “sabe de tudo. Lá na cidade, onde há luz elétrica, homens e mulheres, as garrafas se esvaziam e os pratos se quebram. A vida se quebra e se esvazia. E tudo fica sujo como a barba do profeta” (Braga, 2018, p. 27). Para entorpecer a dor, muitos ficam embriagados. Perante tanta desesperança, muitas vidas se partem.

Já na crônica O homem do quarto andar, o protagonista que tinha uma vida igual a um bonde, imersa no “hábito diário, a obrigação que o esperava”, decide sair da rua onde vivia, pois era um lugar “onde a vida nunca se eleva da besteira trivial [...] e nunca passara por ali ou saíra dali nada emocionante” (Braga, 2018, p. 28). Então, ele decidiu tomar outro rumo. Em Reportagens, o narrador-personagem demonstra os vários olhares que o jornalismo lança sobre um mesmo tema, pois tudo, na verdade, tem um fundo político e ideológico. Algumas reportagens são muito tendenciosas. Esse texto critica a intolerância religiosa e o preconceito.

A lira contra o muro é uma crônica excelente contra o patriarcado, a falta de consciência de classe, a pobreza, a desigualdade social e de gênero. A favor da liberdade e direitos das mulheres. Indo contra o idealismo exacerbado, romântico, de muitos poetas, o narrador afirma que é “extraordinário notar que elas não são simplesmente mulheres, e não existem apenas quando passam por nós ou são beijadas, ou suspiram. É extraordinário saber que elas vivem. Em grande número subalimentadas, e precisam de educação e higiene, duas coisas caríssimas” (Braga, 2018, p. 35-36). 

Por outro lado, Em memória do bonde Tamandaré é uma narrativa que utiliza a metonímia, para substituir o condutor pelo veículo (bonde), como se este tivesse vontade própria. Dessa forma, o narrador-personagem expõe os atos hediondos do condutor do bonde Tamandaré que atropelava várias pessoas, inclusive crianças, mas somente aquelas consideradas “pobres demais”. Essa crônica tece uma crítica ferrenha à desumanização dos pobres, injustiça e impunidade. Mar é uma prosa poética que aborda a estreita relação entre o cronista/poeta e o mar “enorme, ocupando toda a vida, uma vida de [...] força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia” (Braga, 2018, p. 43-44).

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Se por uma lado, A senhora virtuosa representa as pessoas que, escondidas sob o véu da falsa religiosidade, se preocupam em ajudar apenas as pessoas que “dão na vista”, aparecem nos jornais, pois somente assim as suas bondades serão aplaudidas pela multidão. Por outro, O número 12 trata-se da quantidade de filhos que uma família costumava ter na época de Rubem Braga, esse hábito é criticado pelo narrador sobretudo em meios paupérrimos. Além disso, o cronista propõe a alteração do Dia da Raça pelo “Dia da Mistura da Raça”, visto que, no Brasil, não existe uma única etnia, somos miscigenados.

Após todas essas temáticas mordazes, há um apaziguamento nas duas próximas narrativas. Elas não deixam de ser igualmente irônicas, a diferença é o seu tom, são textos carregados de humor. Enquanto na crônica Muito calor o narrador-personagem está fatigado pelo tempo quente e fica somente concordando com um homem prolixo e arrogante para evitar contendas. No texto Cafezinho, é explorada a expressão “ir tomar um cafezinho” para fugir de algum embaraço: “Ah! fujamos assim, sem drama, sem tristeza, fujamos assim. A vida é complicada demais. Gastamos muito pensamento, muito sentimento, muita palavra. O melhor é não estar” (Braga, 2018, p. 54).

Em 1939, ano no qual a crônica Crime de casar foi escrita, não havia divórcio no Brasil — pois foi aprovado apenas em 1977. Havia somente o desquite no código civil, que permitia a separação do casal e de seus bens materiais, sem romper o vínculo conjugal, ou seja, novos casamentos não eram permitidos. Nesse contexto, os personagens do referido texto foram presos justamente por ousar um segundo casamento, em um momento onde não existia divórcio. Por outro lado, ao ler a crônica A casa do alemão, nos deparamos com uma narrativa assustadoramente atual, na qual a guerra deixa feridas “no corpo e no espírito”: “O mundo está confuso. Povos invadem povos. Cidades são arrasadas. Canhões dão berros de morte, aviões despejam bombas, metralhadoras cortam carne” (Braga, 2018, p. 59).

Há outra quebra, um respiro, um texto cômico. Coração de mãe narra a história de duas jovens que foram expulsas de casa, após uma feroz discussão com a matriarca. Abandonadas à própria sorte, as moças recebem várias propostas de homens que queriam “ajudá-las”. Vendo essa situação a mãe voltou atrás em sua resolução e resgatou as filhas. Há um retorno ao tom grave do livro. Em Nazinha, o narrador-personagem fica devastado ao ser informado sobre o falecimento de uma menina de apenas 15 anos. Já em Os mortos de Manaus, o cronista denuncia a banalização da morte, ao ver uma lista na qual os mortos viraram simples dados estatísticos, e eram classificados pelas causas de suas mortes. 

Por fim, a crônica Temporal de tarde traz uma linguagem carregada de ironia e sarcasmo, ao expor as mudanças climáticas e seus efeitos nocivos ao ambiente urbano. E mais, deixa uma previsão do que poderia acontecer caso o poder público não reagisse (o que, infelizmente, se cumpriu, na atualidade): “Que chova, que chova eternamente sobre esses telhados miseráveis, sobre essa cidade de cimento, sobre as ruas sujas [...] as águas subirão pelas paredes, lamberão e engolirão os telhados pobres e subirão” (Braga, 2018, p. 80). A vida imitou a arte ou a arte previu como seria a vida? Fica a questão. O que podemos afirmar, com toda certeza, é que, apesar de ter sido publicado primeiramente em 1944, Morro do Isolamento, de Rubem Braga, permanece ecoando em nossos dias.

REFERÊNCIA:

BRAGA, Rubem. Morro do Isolamento [1944]. 7. ed. São Paulo: Global, 2018. 

Morro do Isolamento está disponível para venda no site da Global Editora: https://lojaglobaleditora.com.br/produtos/Morro-do-isolamento/ 

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