Literatura infantil e encanto: outras maneiras de pensar a realidade
Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos.
Quando Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia, fugindo de Londres, devido aos bombardeios, durante a Segunda Guerra Mundial, chegam à enorme casa de campo de um velho professor, logo descobrem um guarda-roupa mágico, que, na verdade, trata-se de um portal para um lugar chamado Nárnia.
A princípio, apenas Lúcia visita o lugar. Porém, Edmundo e os demais, embora relutantes para acreditar num primeiro momento, não demoram muito para ver que a garota não está louca nem tampouco mentindo.
Quando, finalmente, os quatro irmãos já se encontram juntos na terra mágica, logo descobrem que Nárnia está sob domínio de Jadis, a Feiticeira Branca, e, por isso, lá é sempre inverno e o Natal nunca chega.
No entanto, em Nárnia, há uma antiga profecia que afirma que, assim que os quatro Filhos de Adão e Eva, e também Aslam, um leão misterioso, chegarem ao local, será o fim do reinado de Jadis e do seu encantamento sobre o lugar.
No entanto, embora os quatro humanos e Aslam já estejam em Nárnia, conforme a profecia, as coisas não são tão fáceis de se resolver. Jadis, em ocasião anterior, já havia enfeitiçado o coração de um dos irmãos, Edmundo, para que traísse os demais, entregando-os a ela.
Resta, então, a Aslam e seu exército, assim como aos três irmãos, acharem maneiras de lidar com as consequências da traição de Edmundo.
O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (1950) foi a primeira das Crônicas de Nárnia (1950 – 1956) escritas por C. S. Lewis (1898 – 1963) e se tornou uma das principais referências para tudo o que se fez depois no âmbito da Fantasia.
Particularmente, nutro grande carinho por essa obra, bem como pelas outras histórias do mesmo universo, porque, assim como o guarda-roupa abriu as portas de um mundo mágico para os quatro irmãos, considero que As Crônicas de Nárnia abriram para mim as portas de um mundo tão mágico quanto o de Nárnia: o mundo da leitura.
E, por falar em “mundo da leitura”, qual foi o último livro que lhe levou às lágrimas? Meu carrasco foi Ponte para Terabítia (1977), da escritora norte-america Katherine Paterson (1932 – ).
A obra aborda a amizade entre Leslie e Jess, duas crianças do 5° ano que, dentre outras coisas, estão passando por dificuldades de acolhimento na escola.
Leslie, recém-chegada na pequena cidade rural, se vê rejeitada pelos demais por ser vista como esquisita, desde o modo de se vestir até alguns hábitos, como o de não assistir televisão, por exemplo, já que seus pais, escritores, acham mais interessante que ela passe seu tempo lendo do que na frente da TV.
Jess, por sua vez, além das dificuldades enfrentadas na escola, onde sofre bullying dos garotos maiores, também tem dificuldades na família que, ao contrário da família de Leslie, é pobre e não incentiva hábitos como a leitura e tampouco o desenho, algo que ele adora fazer, mas para o qual não recebe nenhum encorajamento de sua casa.
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Desse modo, a carência afetiva de Jess e a atitude despojada de Leslie, que é quem dá o primeiro passo em direção à construção do que se tornará uma belíssima amizade, se encontram. Depois disso, os amigos, por iniciativa de Leslie, resolvem criar, ainda que apenas em suas imaginações, numa espécie de bosque, um lugar só deles, mágico, onde se protegem da perseguição dos valentões e da falta de acolhimento da realidade ao redor. O lugar é batizado de Terabítia.
Agora, autoproclamados rei e rainha de Terabítia, Jess e Leslie aprendem, juntos, a enfrentar seus inimigos em comum – e também os particulares.
Terabítia é um lugar onde os inimigos reais ganham nova forma, a de monstros imaginários, mas apenas para serem enfrentados e derrotados. Além disso, a terra mágica se torna um espaço de treinamento, onde os garotos se descobrem capazes de derrotar os inimigos mesmo fora dali; imaginação e realidade se confundem, favorecendo o amadurecimento de ambos. No entanto, em meio a essas descobertas, uma tragédia acontece, tornando-se, então, o maior dos desafios a se enfrentar.
Belíssima obra, onde a ingenuidade da infância, marcada pela capacidade de imaginar reinos e seres encantados, reais para quem os vivencia, é cruelmente confrontada por um mundo que se impõe impiedoso, diante do qual qualquer encantamento pode parecer insuficiente para desfazer as marcas deixadas pelos duros golpes da vida.
Finalizo essa reflexão com mais um clássico da literatura infantil. Se tudo o que você sabe sobre o Pinocchio é que ele é um boneco de madeira, que vê o nariz crescer a cada mentira contada, e que anseia por ser um menino de verdade, sinto lhe informar, mas você não conhece o Pinocchio. Pelo menos, não o Pinocchio de Carlo Collodi (1826 – 1890), escritor e jornalista italiano, autor de As Aventuras do Pinocchio: a História de uma Marionete (1883), obra que inspirou – e continua a inspirar – tudo o que leva o nome do Pinocchio mundo afora.
Sim, é bem verdade que o Pinocchio é um boneco de madeira, que vê o nariz crescer a cada mentira contada, e que anseia por ser um menino de verdade. Mas – e agora peço licença para estragar sua infância – também é verdade, e disso poucos sabem, que o Pinocchio é um boneco preguiçoso, desobediente e inconsequente, capaz de magoar profundamente as pessoas que mais o amam, embora sempre se arrependa depois.
Nesse sentido, As Aventuras do Pinocchio é uma obra que se desenrola, basicamente, entre as atitudes egoístas e inconsequentes do boneco e seus corriqueiros arrependimentos, após experimentar as piores consequências possíveis pelos seus atos, apenas para errar novamente e se desculpar uma vez mais.
Mas nem tudo na obra é trágico. Realmente, essas idas e vindas de Pinocchio, entre os vícios e as virtudes, o bem e o mal, vai moldando a marionete, de modo a prepará-la para uma redenção final.
Desse modo, o autor, simbólica e literalmente, demonstra ao leitor que a única maneira possível para que se seja humano de verdade é seguir o caminho do trabalho honesto e da bondade para com os outros em derredor.
As Aventuras do Pinocchio é uma daquelas histórias muito conhecidas, mas pouco lidas. Talvez, por isso mesmo, a equivocada noção de que agrada apenas ao público infantil. Ledo engano. Ritmo, humor refinado, eventos inesperados e até mesmo lições de moral, sempre versando sobre dilemas enfrentados por qualquer ser humano, prendem o leitor do começo ao fim da obra.
O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Ponte para Terabítia e As Aventuras do Pinocchio: a História de uma Marionete, dentre inúmeras outras obras infantis, ao contrário do que muito ainda se pensa, não são meros instrumentos para escapismo da realidade, tratando-se, na verdade, de produções literárias que podem oferecer ao leitor novas maneiras de interpretação e enfrentamento da mesma, conforme sugeriu G. K. Chesterton (1874 – 1936) quando afirmou que: “Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos”.
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