O vício imprudente da bibliofilia II
Ocupando-se com os objetos materiais — os livros, por óbvio — da vida do espírito, a bibliofilia acaba por surpreender quem a ela se dedica com devoção sacerdotal.
Ocupando-se com os objetos materiais — os livros, por óbvio — da vida do espírito, a bibliofilia acaba por surpreender quem a ela se dedica com devoção sacerdotal. Apanhado de surpresa pelos elogios temerários com que alguns bons amigos relataram o seu gosto com a leitura do meu artigo de duas semanas atrás, resolvi dar continuidade a uma série de notas que pretendo fazer publicar neste espaço acolheador, bem ao ensejo de falar do velho vício de colecionar livros de alguma importância, seja intrínseca, no que concerne ao seu valor propriamente liteacolhedorditorial, seja extrínseca, quanto ao que apresenta como curiosidade ou interesse na condição de objeto.
Perguntado, certa feita, sobre as influências que recebera em sua obra de poeta, Gerardo Mello Mourão disse que não era bem o caso de se falarem em “influências”, senão em “referências”. A sutileza do bardo cearense me leva a identificar, entre minhas “referências”, o saudoso Jomar Moraes, grande figura de editor, pesquisador, historiador, escritor, bibliófilo e acadêmico. O legado que deixou fala alto aos nossos brios maranhenses. Perto de uma centena de edições, com o apuro editorial requerido, atenção às normas básicas de fidedignidade textual, amplo material crítico e iconográfico, tem em Jomar Moraes o seu grande responsável e o seu propagador inexcedível. Muito lhe devem os João Francisco Lisboa, os Maranhão Sobrinho, os Sousândrade, os Gonçalves Dias, os Odorico Mendes, entre vários outros, que encontraram em Jomar Moraes o seu editor infatigável. O seu Gonçalves Dias: vida & obra (São Luís: Alumar, Coleção Documentos Maranhenses, 1998) em nada fica a dever em excelência aos esforços de uma Lúcia Miguel Pereira e de um Manuel Bandeira. O trabalho de revisão e atualização realizado no famoso Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão (3ª ed., São Luís: Edições AML, Coleção Documentos Maranhenses, 2008), de César Marques, é algo de espantoso — o trabalho de uma equipe, feito por um só pesquisador. E, quanto ao longo período de 22 anos que permaneceu na presidência da Academia Maranhense de Letras, permito-me o lugar-comum: há uma Academia antes e uma Academia depois de Jomar Moraes, que lhe deu a real dimensão de importância cultural e social que lhe cabe como guardiã da língua portuguesa, das letras e da cultura maranhense.
Fui amigo, leitor e admirador do dr. Jomar, frequentando-lhe, o quanto podia, a preciosa biblioteca, sempre à disposição dos amigos e estudiosos e de todos quantos se exercitassem na nobre arte de conversar, hoje reduzida ao inglório status de trivialidade. Fazia questão de sempre levar ao mestre um exemplar do livro que então acabava de sair das minhas mãos de editor neófito.
Numa dessas ocasiões, perguntei-lhe qual o item mais precioso dentre os vários itens preciosos de sua biblioteca de mais de 20 mil volumes. Ele respirou fundo, suspirou, olhou-me como quem está maturando as possibilidades e, por fim, como um senhor de engenho que se prepara para descer à sua adega, pediu-me que o seguisse até uma determinada estante, já ao final do amplo espaço em que estavam ordenados os seus livros e onde ele passava praticamente o dia inteiro. Postando-me a seu lado, vi que pegou cuidadosamente um pequeno volume, de suas 130 páginas, devidamente encadernado em “meia” de couro com tecido. Percebendo a minha atenção, folheando lentamente o livro, fixou-se, enfim, na sua folha de rosto: tratava-se de um livro raro de Dunshee de Abranches, publicado em 1922, em comemoração ao centenário da Independência do Brasil, e com o qual o grande publicista maranhense procurou homenagear o seu ilustre antepassado — Garcia de Abranches, o Censor (O Maranhão em 1822) — memória histórica (São Paulo: Typographia Brazil de Rothschild & Co., 1922).
“É este, Lorêdo” — disse-me o dr. Jomar, quase sussurrando, não tanto em decorrência das dificuldades que lhe ficaram de uma trombose, mas pelo respeito que o livro impunha. Mais precisamente pelo seguinte detalhe que o fazia indisputável — à bela folha de rosto, feita com papel de alta qualidade, como todo o livro, pude ler, em caligrafia severa, escrita próxima ao corte, a dedicatória do Autor: “Ao Ex.mo. Dr. Epitácio Pessoa, Presidente da República, espírito superior de estadista, alma temperada na luta pelas grandes causas da Pátria, a homenagem de sincera e velha estima e profunda admiração. Autor. Rio de Janeiro — 7 de Setembro de 1922.” E, abaixo, outra dedicatória, mais recente: “Jomar Moraes: Este livro tem a minha idade e me foi oferecido, em 1958, pela esposa do Dr. Epitácio Pessoa. Transfiro para você, com alegria. Está em boas mãos! Rio, 27.11.74. Clóvis Ramos”.
Como o leitor pode imaginar, fiquei admirado da importância daquele exemplar, ofertado pelo Autor — já então figura eminente na Capital da República, como escritor, publicista, jornalista e parlamentar — ao então presidente Epitácio Pessoa, exatamente no 7 de Setembro, um século depois da ação perfeitamente legítima de D. Pedro, ditada pelas circunstâncias, de declarar a independência do Brasil em face das Cortes de Lisboa, com o que foram preservadas e asseguradas as nossas prerrogativas políticas e institucionais. E com a reminiscência do saudoso poeta, pesquisador e acadêmico Clóvis Ramos, que, tendo sido presenteado pela viúva do estadista paraibano com o livro soberbo, passou-o ao nosso dr. Jomar. Um presente régio.
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Aliás, duplamente régio. Os monárquicos bem o sabem que, em setembro de 1920, o presidente Epitácio Pessoa, tocado ainda por aquele velho espírito universalista que marcava o melhor dos nossos homens de Estado, teve a sensibilidade e a grandeza de revogar a execrável “Lei do Banimento”, de 1889, pela qual o então Governo Provisório, chefiado pelo marechal Deodoro, havia decretado o “banimento” da Família Imperial do território brasileiro — território, este, unificado e consolidado por obra da própria Família Imperial.
Pois bem, meu caro leitor — no momento em que escrevo, já este livro se encontra em meu poder, comprado a um livreiro dentre os melhores desta nossa cidade de São Luís do Maranhão. Não conta o exemplar, como gostaria, com a dedicatória do saudoso dr. Jomar Moraes, transmitindo-me a posse de uma tal preciosidade, mas penso que o grande editor e bibliófilo ficaria satisfeito em saber que o livro veio parar em minhas mãos, para onde o destino o empurrou. In illo tempore, no dizer de Trindade Coelho, que assim chamou ao seu livro de memórias coimbrenses.
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A presente semana será de uma grande significação cultural — ainda hoje, às 19h, em sua sede à Rua da Paz, a Academia Maranhense encerrará oficialmente as comemorações em torno do bicentenário de nascimento do Poeta Maior. Fica demonstrada a vitalidade da Academia, bem como o compromisso dos acadêmicos, representados pela pessoa do presidente Lourival Serejo, com as nossas coisas mais autênticas. Na ocasião, será outorgada a Medalha do Bicentenário de Gonçalves Dias a diversas personalidades, uma das quais este obscuro livreiro, seguramente o menos importante dentre os contemplados. E, ainda mais importante, serão lançados Todos os cantos do autor das “Poesias americanas”, em coedição da Academia com a editora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Já na quinta-feira, dia 09, dar-se-á um evento da mais alta importância para as nossas letras — tomará posse, na cadeira nº 27 da Academia, o escritor e crítico literário Alexandre Maia Lago, sucedendo ao poeta Magson da Silva. Episódio a augurar bons ventos à Casa de Antônio Lobo, que elegeu e dará posse a um verdadeiro homem de letras. Depois da eleição e da posse do grande ensaísta e escritor Rossini Corrêa, a chegada do Alexandre Maia Lago como que repõe o encaixe modelado pelo melhor artífice no livro mais que centenário da veneranda instituição.
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