COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Versos e Reversos

Em homenagem ao centenário do escritor e poeta maranhense José Chagas, apresento o livro Os canhões do silêncio (2002) de sua autoria.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso

Os canhões do silêncio (2002), de José Chagas, é um livro composto por um único poema de grande extensão, com cerca de 265 páginas, no qual o autor traçou um interessante desenho do Centro Histórico de São Luís, mais especificamente, do berço da cidade: o bairro do Desterro – “Todos os caminhos levam o homem / ao Desterro e também / ao desterro de si mesmo / Do Desterro nasce a cidade / e ao desterro volta ela no tempo” (Chagas, 2002, p. 237). Vale ressaltar, que em várias estrofes, não são utilizados sinais de pontuação, nem mesmo pontos, dando ao poema um ritmo lento e contínuo, muito semelhante ao da reza ou do sermão, o que faz ainda mais sentido se observarmos o conteúdo deste livro, que cria uma cidade dividida em dois polos: sagrado e profano, e, assim, entramos em uma atmosfera, por vezes, apocalíptica, que profetiza o fim da cidade, sua completa ruína, por conta do abandono da população e do poder público. De acordo com o poeta Sebastião Moreira Duarte (1998), no artigo intitulado “Um pa/lavrador da croni/cidade”, que se encontra no início da terceira edição de Os canhões do silêncio, publicada em 2002,

Mais do que qualquer outra obra de José Chagas, até então, Os canhões do silêncio constitui uma inquietante pergunta sobre o ser e o tempo. Pela metonímia do mirante e do Desterro, e deste bairro à da cidade, em sua trajetória histórica entre o esplendor e a decadência, o eu do poema metaforiza as contradições de grandeza e miséria, de virtude e vício, de permanência e perecimento que assinalam a própria cronicidade do ser humano. [...] E daí se vê como, sendo São Luís o próprio tempo petrificado em história, seja José Chagas o poeta-cronista, por excelência, da velha capital” (Duarte, 1998, p. 16-17).

Nesse sentido, no poema Os canhões do silêncio (2002) observamos a cidade sob um prisma dicotômico, dividido entre o sagrado e o profano, entre prazeres terrenos e glórias eternas, no qual é perceptível um forte teor político, com várias críticas sociais, por isso, trata-se de uma verdadeira cantiga de protesto entoada por um estrangeiro1, possui uma estreita relação de afeto com o espaço habitado, e, assim, se revolta com a negligência com a qual tratam os marginalizados – assim diz o poeta irônico: “A mão que esmola / e a mão que assalta / na mesma escola / de instrução alta, / ali compensam / sua razão / lançando bênção / e madição ” (Chagas, 2002, p. 247) –, e a cidade de seus primeiros encantos, que não existe mais – chora o desconsolado eu-lírico “A cidade está perdida / no tempo e também em mim, / onde o sobrado da vida / assiste ao seu próprio fim [...] Agora o bairro que vejo, / do Desterro se desterra, / quebra o último azulejo / nessa inevitável guerra” (Chagas, 2002, p. 279). E, ainda mais, nesse poema chaguiano, encontramos interessantes relações intertextuais, como por exemplo, com o poema Louvação a São Luís, de Bandeira Tribuzzi, como é possível notar nos versos: “Ó minha cidade / deixa-me viver / a canção da saudade / nesse entardecer” (Chagas, 2002, p. 284).

Se por um lado, no poema Os telhados (1999), José Chagas apresenta a cidade velha sob um plano elevado, o mirante e os telhados, e por isso, alcança mais espaços, fazendo um panorama sobre o Centro Histórico de São Luís, sem muitas descrições de detalhes arquitetônicos, enfocando os sentimentos de solidão, abandono e o silêncio, ocasionados pela passagem abrupta e desgastante do tempo, por falta de cuidados do poder público, e dos próprios habitantes; por outro, na obra Os canhões do silêncio (2002), o poeta apresenta, desde o título, uma contradição: armas de guerra que fazem barulhos estrondosos (canhões) pertencentes ao silêncio, isto é, existe uma possível ideia de inutilização de algo com muito potencial, pois o bairro do Desterro, apresentado minuciosamente, ao longo do poema, teve seus dias áureos, e, por isso, tem potencial, segundo José Chagas, de permanecer em seu posto de glória, desde que receba os devidos cuidados, tal como podemos observar em “é negar esse infinito / capital que Deus investe / não para vê-lo restrito / a pó, mas a um bem celeste” (Chagas, 2002, p. 183).

No decorrer desse livro, notamos ainda uma forte presença de traços antimodernos, visto que dentre os seis arquétipos instituídos por Compagnon (2011), a saber, Contrarrevolução, Anti-iluminismo, Pessimismo, Vituperação, Sublime e Pecado Original, Os canhões do silêncio (2002) traz consigo os quatro últimos aspectos supracitados. Dessa maneira, tanto a teoria dos Antimodernos, quanto o referido poema de José Chagas possuem pontos de similaridade, tais como a decadência, o saudosismo e uma ânsia pelo fim do progresso, que a tudo degrada. O Sublime – um anseio pelo sagrado, sobrenatural e transcendental – é o traço antimoderno que mais recorrente no livro em análise, por fundamentar-se na dicotomia sagrado e profano, ressaltando a busca do eu-lírico por tudo aquilo que está além da nossa compreensão, que transcende as barreiras do espaço-tempo e adentra o território da fé – “O bairro cria um limite / entre o sagrado e o profano / e sabe o que se transmite / do divino para o humano” (Chagas, 2002, p. 203) –; mas, paradoxalmente, o poeta também demonstra seus vícios, ao ansiar, com a mesma intensidade, por paixões e prazeres terrenos, tais como a ganância, que acarretam em altos preços, e, assim, o poema também carrega consigo o arquétipo antimoderno do Pecado Original, no qual todos pecaram desde Adão, dessa maneira, o pecado seria hereditário, e, por isso, pagaríamos pelos erros dos outros, tal como podemos observar nos versos: “Pago tudo / e se o que me resta é pagar / é porque sou o homem devido / Pago-me com o que sou” (Chagas, 2002, p. 145). Assim, podemos notar esse desejo paradoxal pelo sagrado e profano, simultaneamente, nos versos: “De Deus e do Diabo / cabe um pouco a mim / que início e acabo / sem começo e fim” (Chagas, 2002, p. 156).

Além disso, podemos notar, no decorrer de todo o poema, o arquétipo antimoderno denominado Vituperação, que é um clamor, sermão, reclamação, profecia, ou, até mesmo, uma maldição. Assim como em Os telhados (1999), no livro Os canhões do silêncio (2002), o próprio fato de se tratar de um poema único, com uma grande extensão, e poucos sinais de pontuação, já indica uma possível aproximação com um tipo de reza, sermão, ladainha, com um ritmo lento e contínuo, que brada por justiça social. O Pessimismo é outro traço antimoderno presente no referido poema, compreendendo-o enquanto a energia do desespero, como um sentimento coletivo, que luta ativamente contra o progresso e seus efeitos nocivos para a sociedade. Os versos a seguir evidenciam tanto o Pessimismo, quanto a Vituperação:

 

Vias e travessas pelo bairro antigo

cumprindo promessas ou duro castigo,

são ruas de gente que trabalha a vida

como um caso urgente de luta suicida,

são caminhos feitos na pedra dos sonhos

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secando como leitos de rios tristonhos,

são ruas que enfim não chegam a ser ruas 

porém nos ensinam só verdades cruas,

só duros destinos que vêm e vão como repentinos

traços de carvão” (CHAGAS, 2002, p. 246).


A partir da leitura desses versos, podemos observar o arquétipo antimoderno da Vituperação, no instante em que existe uma denúncia, clamor, ou até mesmo, um tipo de sermão, do eu-lírico que sofre com a vida difícil enfrentada, dia após dia, pela população, que ao chegar ao final de tudo, se tornam meros “traços de carvão”, que logo são apagados pelo vento, sem deixar vestígios de sua duro existência. E o Pessimismo antimoderno acompanha o poeta, pois ele é um porta-voz da dor e angústia do povo, e por extensão, da cidade. 

REFERÊNCIAS:

BENJAMIN, Walter. (1933) Experiência e pobreza. Op. cit. 2019.

CHAGAS, José. Os canhões do silêncio. 3 ed. São Paulo: Editora Siciliano, 2002.

_______. Os telhados. São Luís: Editora AML, 1999.

COMPAGNON. Os Antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

1 De acordo com Walter Benjamin (2019), estrangeiro é o indivíduo que está constantemente em um lugar de passagem. Esse lugar é caracterizado pela errância e exílio, que possibilita a desnaturalização de conceitos e hábitos definidos por alguma cultura eurocêntrica purista. O poeta José Chagas é um estrangeiro errante, somente se levarmos em consideração esse termo sob o viés da subjetividade. Ele não se sente completamente pertencente ao lugar, por isso, existe um distanciamento que o permite enxergar as mazelas que os habitantes ignoram.

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