COLUNA
Isaac Viana
Isaac Viana é psicólogo, mestre em Cultura e Sociedade, professor universitário e escritor.
Isaac Viana

Dois Antônios. Dois provocadores: Abujamra e Belchior

Já não lembro o ano, nem a ocasião, com tanta certeza, mas creio que era por volta de 2012. Eu tinha uma televisão de tubo no meu quarto e uma parabólica (alguém aqui sabe o que é uma parabólica?!).

Isaac Viana

A televisão brasileira pode mudar a vida de alguém? A resposta mais óbvia me parece "não". Afinal de contas, como imaginar que algo feito, sobretudo, para o entretenimento e a divulgação de empresas possa contribuir para a melhoria de indivíduos?

Já não lembro o ano, nem a ocasião, com tanta certeza, mas creio que era por volta de 2012. Eu tinha uma televisão de tubo no meu quarto, uma parabólica (alguém aqui sabe o que é uma parabólica?!) e vontade de encontrar algo de diferente na televisão. Ao acaso, descobri Provocações, programa iniciado em 2000, por Antônio Abujamra e um amigo, na TV Cultura. Esse programa mudou minha vida.

Mudou minha vida porque, como Abujamra sempre dizia logo no início de cada entrevista, embora não fosse "uma janela aberta para o mundo" (do que eu discordo), era "um periscópio sobre o oceano do social" – e observar o social sempre foi minha praia. Além disso, nos avisava Abu, já eram tantos anos "caminhando sobre o incerto e idolatrando a dúvida". Ao final, a pergunta trágica, como só Abujamra sabia fazer, "O que é a vida?".

Eu, um jovem com tantas certezas, a cada entrevista assistida, me via repensando muitas das minhas convicções. Se não por causa dos convidados (prostitutas, mendigos, artistas, filósofos, intelectuais, etc.), sem dúvida por causa do entrevistador: sempre irreverente, erudito e provocador.

Mas, para minha tristeza, Provocações chegaria ao fim em 2015, com a morte do apresentador, que eu havia conhecido tardiamente. Eu disse para mim que, assim que alguém escrevesse uma biografia sobre ele, a leria. Enquanto isso, me debruçava na internet em busca de mais sobre a vida de Abu.

Para minha alegria, em 2019, saiu Antônio Abujamra: calendário de pedra, uma biografia. A obra, escrita por uma amiga íntima, Ida Vicenzia Flores, é extremamente minuciosa ao nos mostrar quem foi Abu, muito antes do Provocações existir.

Ida nos guia pela mão, nos conduzindo desde os ancestrais de Abujamra, perpassando por sua infância e adolescência, sua vida adulta como diretor, crítico e ator de teatro, suas incursões pela Europa, o convívio com João Cabral de Melo Neto (sim, Abujamra morou 27 dias com o poeta brasileiro na França), a volta para o Brasil, seu casamento, a ida para a televisão e o cinema, culminando no programa Provocações.

Ao ler esta biografia, o leitor tem a certeza de que Abujamra sempre foi um provocador (embora ele mesmo dissesse que, na verdade, era um "provocado" pelas crueldades da vida, apenas reagindo a tal provocação). Seu sonho sempre foi o de "mudar o mundo", e fazer isso "mudando a cabeça do brasileiro", por intermédio da educação e da cultura; ensinando o povo a dizer "não", como queria Bertolt Brecht, a maior influência artística de Abu.

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Se você é amante do teatro brasileiro, fã de Antônio Abujamra ou, simplesmente, um curioso acerca da vida de grandes homens, certamente irá gostar dessa biografia.

Outro Antônio que marcou minha vida profundamente, também exímio artista e provocador, foi o cantor Belchior. Escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros, Belchior: apenas um rapaz latino-americano (2017) é a primeira biografia desse que se tornou um dos principais nomes da Música Popular Brasileira.

Com foco sobretudo na carreira e nas obras do cantor e compositor cearense, o autor conduz o leitor numa jornada que se inicia na adolescência de Antônio Belchior, quando o futuro artista decide se tornar frade no mosteiro dos capuchinhos, na época situado na serra de Guaramiranga, interior do Ceará.

Já inclinado para a vida intelectual, desde sempre apaixonado pela literatura clássica, o pequeno Belchior diz ao pai que quer ser frade. Sem questionar, o pai o autoriza. No mosteiro, o adolescente se aprofunda ainda mais na vida intelectual e cultiva uma disciplina notável, que irá acompanhá-lo ao longo de toda a sua carreira.

Depois de algumas decepções no mosteiro, Belchior abandona a vida no claustro e passa em primeiro lugar para o curso de Medicina numa universidade em Fortaleza. No entanto, nunca concluiria o curso, porque, no meio do caminho, a música o cooptaria.

Tendo iniciado a carreira musical em Fortaleza, junto a outros amigos, Belchior decide ir para o Rio de Janeiro. Depois de passar por muitas dificuldades, sobretudo financeiras, começa a ter seu trabalho reconhecido na capital carioca, primeiro como compositor e somente depois como cantor. Daí em diante, o jovem artista iria ganhar o Brasil, fazendo enorme sucesso, principalmente nos anos de 1970 e 1980.

Uma das principais características das músicas de Belchior são as letras, em sua maioria, profundas, com poética rebuscada, embora acessíveis ao grande público, visto que versam acerca do cotidiano popular. Muitas dessas canções falam a respeito da realidade nordestina, inclusive das dificuldades dos nordestinos ao irem tentar a vida em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Obra indispensável para os fãs de Belchior, o livro de Jotabê Medeiros apresenta excelentes diálogos entre as geniais composições do "rapaz latino-americano" e o contexto histórico e social nos quais o cantor estava inserido. Além disso, deixa claro como a erudição do ex-frade capuchinho atravessa toda a sua obra, fazendo dele um dos maiores letristas da música brasileira.

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