Gilberto Gil tem processo sobre apologia às drogas arquivado

Atualizada em 27/03/2022 às 14h51

BRASÍLIA - O procurador-geral da República, Claudio Fonteles, mandou arquivar a representação feita pela ONG Mensagem Subliminar contra o ministro da Cultura Gilberto Gil. A ONG acusou o ministro de fazer apologia ao uso da maconha no videoclipe da música "Kaya N'Gan Daya" e nas capas do CD e DVD de mesmo título. Com o ponto final colocado na história, Gil não responderá ação penal.

A intenção da ONG era suspender a venda do CD e barrar a exibição do clipe da música em emissoras de televisão. Mensagem Subliminar afirmou ter constatado "imagens consideradas subliminares -- e outras explícitas -- de apologia ao uso de drogas" no videoclipe. De acordo com a ONG, "a palavra Kaya, na linguagem Rastafari, a mesma utilizada por Bob Marley, significa maconha".

Fonteles entendeu que “admitir as alegações da Denunciante como crime de apologia ao uso de entorpecentes, seria o mesmo que acolher a presunção de fato e a responsabilidade objetiva no âmbito penal, sem culpa, sem dolo e sem ação ou omissão do sujeito, inadmissível no Direito Penal Moderno e próprio dos regimes totalitários”.

Embora o despacho seja do ano passado, a ONG afirma ter tomado conhecimento do documento recentemente.

Leia o documento assinado por Fonteles

Processo PGR nº 1.00.000.003194/2004-81

INTERESSADO: ONG DE ESTUDOS E PESQUISAS EM MENSAGEM SUBLIMINAR

ASSUNTO: DENÚNCIA

“Suposta prática de apologia ao uso de entorpecentes no videoclipe da canção“Three little birds”, do álbum “Kaya N’Gan Daya”. Ausência de justa causa. Parecer pelo arquivamento do procedimento no âmbito do MPF.”

DESPACHO

1. Trata-se de notitia criminis formulada pela ONG de Estudos e Pesquisas em Mensagem Subliminar, contra o Ministro de estado da Cultura GILBERTO GIL, imputando-lhe a suposta prática do crime de apologia ao uso de drogas, com base em videoclipe da canção “Three little birds”, do álbum “Kaya N’Gan Daya”.

2. Conclusos os autos, foi encaminhado o Ofício PGR/GAB/Nº 448 ao Ministro de Estado para que prestasse as informações que entendesse cabíveis (fls.15).

Após, o Ministro de Estado prestou informações a fls. 16/44 e 45/59.

Inicialmente, há que se ressaltar que o direito penal brasileiro não admite a possibilidade do crime de apologia ao uso de drogas de forma subliminar, sem ação dolosa ou culposa e sem conduta expressa e explícita do sujeito ativo.

Afinal, como já dizia o saudoso mestre Nelson Hungria (1) “Apologia é a exaltação sugestiva, o elogio caloroso, o louvor entusiástico. A diferença entre a incitação do artigo 286 (incitação) e a apologia é que, naquele exorta-se ou aconselha-se indissimuladamente, enquanto que nesta justifica-se, apoia-se, exalta-se, aplaude-se, e de tal modo que torna implícita a instigação.”.

Prossegue o professor Mirabete (2) aduzindo que “(...) fazer apologia (é) elogiar, louvar, enaltecer, gabar, exaltar, aprovar, defender. O agente elogia o crime, como fato, o criminoso, o seu autor. Não constitui apologia criminosa o ato de descrever o fato, de tentar justificá-lo ou de ressaltar qualidades reais ou imaginárias do criminoso, desde que não impliquem o elogio pelo crime praticado.”.

Nesse sentido, válido transcrever esclarecedor trecho das informações prestadas pela Consultoria Jurídica do Ministério da Cultura, vejamos:

“(...) incriminar uma mensagem subliminar -- que está abaixo da

percepção consciente -- seria o mesmo que subverter todos os

princípios que norteiam o Direito Penal, ao imputar pena para uma

conduta inexistente, que não foi exteriorizada mediante uma ação ou

omissão dolosa ou culposa do agente. O Direito Penal é incompatível com a idéia subliminar. O fato existe ou não existe, não pode estar subtendido numa mensagem que só seria exteriorizada mediante uma análise dos supostamente “sábios” no assunto.

Para o Direito Penal, o crime é um fato típico, antijurídico e culpável. Portanto, crime é fato explícito contrário ao direito. Fato não se presume. “O Direito Penal Moderno é Direito Penal da

Culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intolerável a

responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem.

Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato.

Fato não se presume. Existe, ou não existe. O Direito penal da culpa é inconciliável com presunção de fato. Não se pode punir alguém por crime que não cometeu...” (STJ, RE 46424-2/RO).

Portanto, admitir as alegações da Denunciante como crime de apologia ao uso de entorpecentes, seria o mesmo que acolher a presunção de fato e a responsabilidade objetiva no âmbito penal, sem culpa, sem dolo e sem ação ou omissão do sujeito, inadmissível no Direito Penal Moderno e próprio dos regimes totalitários.

O artigo 287 do Código Penal prevê o tipo penal de apologia de crime, consistente em “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: pena – detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou multa”.

É absolutamente inadmissível apologia subliminar, pura contradição. Apologia é manifestação explícita e expressa de um pensamento consistente no elogio, no louvor escancarado a um fato criminoso, feita publicamente, para aprovar, louvar, enaltecer ou exaltar o crime. Assim, revela-se como impossível o tipo penal de apologia ao crime feita de forma subliminar, como que a Denunciante. (...)”

Ademais, quando se tem em análise o princípio constitucional inserto no inciso LVII do art. 5º da Constituição da República -- princípio da presunção de inocência, tem-se a ausência de justa causa para amparar eventual persecução penal, na medida em que a prova colhida é muito precária e produzida após transcorrido muito tempo do suposto ilícito penal, dificultando, assim, a elucidação dos fatos.

Portanto, com as diretrizes trazidas pela própria Carta Política de 1988, o direito penal está a exigir do órgão acusador imputações criminosas lastreadas no chamado fumus comissi delicti, de sorte a não atrair injustificadamente ao cidadão o chamado streptus fori de ver-se processado por fato que a ele não poderia ser imputado.

Destarte, impende visualizar a presença, ab initio, de justa causa a amparar eventual persecução penal, de sorte a verificar ao menos a existência da fumaça de um injusto típico.

Posto isso, determino o arquivamento do presente feito no âmbito do Ministério Público Federal.

Brasília, 20 de maio de 2004.

Ass. CLAUDIO FONTELES

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais Twitter, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.